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"A deterioração das condições de vida, sobretudo dos segmentos de renda mais baixos, é tal que não será em pouco tempo que recuperaremos as condições anteriores, mesmo em caso de haver políticas ativas por parte do Estado. Frente a isso, não há como prosseguir na insensatez de congelar gastos, especialmente na área social. A não ser que, a cada exercício, seja introduzida nova emenda constitucional para fazer frente à calamidade pública do ano, tornando nossa Constituição uma peça cada vez mais estranha e transitória."
A insistência das autoridades econômicas do governo atual em manter o regime fiscal introduzido pela Emenda Constitucional nº 95 (EC 95) guarda total semelhança com a atitude dos condutores da nau dos insensatos, sobejamente mencionada na literatura e nas artes da cultura ocidental. Numa leitura generosa com relação a esses condutores, podíamos dizer que não sabem o que fazem, mas, na verdade, não lhes importa para onde a nau está sendo levada, quais serão as consequências de sua tresloucada viagem e a qual porto chegarão. Se é que chegarão.
Deixando de lado o equivocado diagnóstico sobre a evolução da dívida pública brasileira, que justificou a proposta do novo regime fiscal e ganhou o apoio dos incautos de todos os tipos, a insensatez revelou-se no prazo de vigência do congelamento dos gastos (vinte anos, com possibilidade de revisão aos dez), na inclusão dos gastos sociais e na exclusão do serviço da dívida. Na época, estudo realizado por BOVA et al (2015), que analisa as regras fiscais vigentes em 89 países, mostrava que, embora a introdução de teto para o gasto público não se constituísse uma novidade, o que foi aplicado no Brasil não tem paralelo no mundo. Como escrevemos em outro momento (Marques e Andrade, 2016) ao tratar da então Proposta de Emenda Constitucional 166, de 2016, (que passou a ser a EC 95) e com base nesse estudo, em nenhum dos países que adotaram regras que limitam o gasto público o horizonte temporal foi de longo prazo e registrou condições semelhantes no que se refere aos gastos sociais, ao tratamento concedido às despesas com o pagamento dos juros da dívida pública e ao mecanismo legal utilizado.
Ao que parece, podemos dizer que “nossos” neoliberais, ao assumirem como prioritário o equilíbrio fiscal, foram mais realistas do que o rei, como diz a expressão popular. Em outros países, ao contrário do que aqui foi aprovado, gastos sociais, principalmente aqueles vinculados ao seguro desemprego, assistência social, saúde e educação, foram preservados. O marco temporal, por sua vez, varia de quatro, três e mesmo um ano. Em apenas três pequenos países (Dinamarca, Geórgia e Singapura) as regras atinentes à expansão do gasto público foram inscritas na constituição. Nos demais, isso foi feito mediante leis ordinárias ou acordos políticos. Em outros, foram colocados limites para o pagamento do serviço da dívida.
É preciso lembrar, ainda, que a EC 95 foi aprovada em dezembro de 2016, quando o país acumulava uma queda do PIB de 6,8% (2015 e 2016). Naquele momento, o desemprego voltara com toda a força e a pobreza retornara a níveis só vistos antes do início da implantação plena do Programa Bolsa Família. Sua aprovação, portanto, estava em total dissonância com a realidade vivida pela maioria da população brasileira. Como sabido, os anos seguintes de vigência do novo regime fiscal registraram crescimentos pífios da economia, o que não permitiu que a economia recuperasse sequer o nível de 2014 em 2019.
Os três primeiros anos de vigência da EC 95 rapidamente tiveram impacto em áreas sociais, tais como saúde e educação. Vejamos, rapidamente, a situação da saúde. Em 2017, seu piso correspondeu a 15% da receita corrente líquida (RCL), como fruto de negociação quando da aprovação da emenda, antecipando o percentual que seria aplicado somente em 2020. Em 2017, houve, por isso, uma elevação do gasto federal per capita disponível com relação a 2016. Santos e Funcia (2020, s.p.), no entanto, alertam para o fato de que, ao final de 2017, “houve um crescimento de 81% dos empenhos a pagar do Ministério da Saúde, em comparação a 2016, e redução nominal dos pagamentos das despesas inscritas em restos a pagar, o que resultou no crescimento de 50% do total inscrito e reinscrito para execução financeira em 2018. Em outros termos, foram empenhadas as despesas sem a efetiva liquidação e pagamento, ou seja, essas despesas não foram efetivadas como ações e serviços para atender as necessidades de saúde da população, ainda que tenham integrado o seu piso”.
Ainda segundo esses pesquisadores, a partir de 2018, o piso e o valor efetivamente aplicado na saúde têm diminuído, tanto em termos reais per capita, como em proporção da RCL. Em 2018, foram de fato gastos R$ 116,821 bilhões (valor aplicado menos o empenho 2018), de modo que o SUS perdeu no ano R$ 3,981 bilhões. A partir desse momento, o SUS, que desde sua criação enfrentava uma situação de subfinanciamento, isto é, contava com recursos inferiores ao necessário para fazer frente ao desafio de um sistema público universal, deixou de ser subfinanciado e passou a sofrer um verdadeiro desfinanciamento.
Em 2019, para uma RCL de R$ 905,659 bilhões, caso fossem aplicados os 15%, a parte federal do SUS deveria contar com R$ 135,849 bilhões. No ano, o valor aplicado menos o empenho 2019 foi de somente R$ 122,270 bilhões, registrando uma perda de R$ 13,579 bilhões. Em dois anos, portanto, a perda foi de R$ 17,560 bilhões. Por consequência, o resultado disso impactou negativamente o gasto em saúde per capita, deteriorando ainda mais as condições de realização das ações e serviços do SUS. É enfrentando essa realidade no campo da saúde pública, única opção de acesso aos cuidados de mais de 70% da população brasileira, que chega a pandemia no país no início de 2020.
À situação de semiestagnação que vinha sofrendo a economia brasileira se segue uma retração de 4,1%. O acumulado dos anos anteriores e o desempenho de 2020, no tocante à situação de desemprego, à queda da renda dos ocupados (especialmente daqueles situados nos extratos mais baixos), ao aumento expressivo da população pobre e daquela que vivencia insegurança alimentar, resultaram que a situação social do país tornou-se uma questão maior, uma tragédia humana sem precedentes. Além disso, a pandemia continua e estamos correndo o risco de vê-la recrudescer pelo avanço da variante Delta, já presente em 10 estados e no Distrito Federal.
A deterioração das condições de vida, sobretudo dos segmentos de renda mais baixos, é tal que não será em pouco tempo que recuperaremos as condições anteriores, mesmo em caso de haver políticas ativas por parte do Estado. Frente a isso, não há como prosseguir na insensatez de congelar gastos, especialmente na área social. A não ser que, a cada exercício, seja introduzida nova emenda constitucional para fazer frente à calamidade pública do ano, tornando nossa Constituição uma peça cada vez mais estranha e transitória. A insistência em manter o regime fiscal tal como está apenas revela a que “rei” ele favorece: ao grande capital financeiro nacional e internacional, que não está preocupado com o destino da maioria da população. Essa segue à deriva, passageira involuntária da nau dos insensatos.
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(De Rosa Maria Marques, artigo intitulado "A Nau dos Insensatos", publicado no Boletim Carta Maior - Aqui.
Rosa Marques é professora titular de economia da PUC-SP e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política e da Associação Brasileira de Economia da Saúde).
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Situação típica de realidades neoliberais. em que o Mercado é o dono da regra maior. Que se dane a situação social, a prioridade é atender aos desígnios dos aplicadores, especuladores e credores locais e internacionais. É como diz o douto 'analista' (ou, como bem definiu Luis Nassif: o 'cabeça de planilha'): "Ora, ora, se já se está a amargar a retração de investimentos estrangeiros em nosso País. imagine o que ocorrerá se forem atendidas as demandas sociais, o que desgraçadamente impactaria mais fortemente ainda a obtenção de superávit primário!"
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