"Uma das diferenças que mais e mais se acentuam entre o trabalho da mídia empresarial e o da mídia independente é o compromisso com a investigação e a continuidade das apurações. Nos jornalões e televisõezonas, as notícias se sucedem em impactos curtos e logo são largadas de lado, num fluxo imposto pela busca da novidade e da quantidade. Denúncias, suspeitas e descobertas passam velozes pelas manchetes, na maioria das vezes para nunca mais se voltar a elas. Com isso, o chamado poder da mídia se esvai cada vez mais.
O site de notícias Brasil 247, embora se caracterize principalmente por ser um clipping de notícias de interesse da esquerda, expande sua ação num conjunto interessante de colunistas e blogueiros, além da TV 247 com programas e lives de análise da atualidade política. O experiente e premiado repórter Joaquim de Carvalho tem se destacado com seus documentários que procuram recuperar os rastros de acontecimentos cruciais e não deixá-los morrer no esquecimento. Depois de A História Secreta da Cloroquina e Delgatti, o Hacker que Mudou a História do Brasil, ele traz seu trabalho mais ambicioso, Bolsonaro e Adélio – Uma Fakeada no Coração do Brasil.
Os três filmes foram viabilizados através de contribuições dos leitores do Brasil 247. Têm a marca da reportagem investigativa, conduzida pessoalmente por Joaquim. Ele viaja, procura personagens para entrevistar, articula ligações e constrói uma narrativa a partir tanto de evidências quanto de questionamentos sobre a verdade porcamente estabelecida pela mídia não investigativa.
No caso da Fakeada, Joaquim alinha as muitas dúvidas que inevitavelmente se seguiram ao suposto atentado a Jair Bolsonaro em Juiz de Fora, a 6 de setembro de 2018. A dita facada desferida por Adélio Bispo de Oliveira no então candidato à presidência viria a ser instrumental para a sua eleição ao Planalto. O documentário não sustenta uma tese, mas sim levanta a suspeita de um auto-atentado. Os indícios se acumulam desde as repentinas mudanças no ativismo digital de Adélio meses antes do incidente, criando pressupostos de uma iniciativa ligada à esquerda.
A passagem de Adélio pelo mesmo clube de tiro de Florianópolis nas mesmas datas que Carlos Bolsonaro, sua filiação mais recente ao PSD, os pagamentos feitos em dinheiro, as inexplicáveis falhas de segurança no evento de Juiz de Fora (com a contratação de "seguranças voluntários"), a insistência de Bolsonaro em não usar colete à prova de balas naquele dia são alguns dos dados suspeitos levantados na reportagem e relacionados com diversos outros possíveis indícios. Entre esses, a promoção posterior de seguranças e vários envolvidos no episódio a cargos no governo e na política.
Diante de um quadro repleto de fotografias, Joaquim vai reconstruindo uma teia que liga inúmeros personagens entre si e à ocorrência de Juiz de Fora. Alguns são procurados pelo repórter e acentuam a nebulosidade dos fatos. Outros se recusam a falar, até mesmo com o caso de uma pequena agressão a Joaquim.
Investigar é juntar sinais. Joaquim relembra, por exemplo, que meses antes do atentado Bolsonaro participou de um culto evangélico onde sua mulher e um pastor oraram pela sua cura com as mãos postadas sobre seu abdômen. Poderia ter trazido à lembrança também a fala da comentarista Eliane Cantanhêde sobre o tratamento de câncer do atual presidente, assunto nunca mais retomado. O prontuário do Hospital Albert Einstein (para onde ele foi levado para "estar em casa") nunca foi apresentado à Polícia Federal, enquanto fotos de tempos diferentes revelam cicatrizes que mudaram de lugar.
O cenário turvo se estende até a atualidade, quando Adélio é mantido incomunicável numa prisão de segurança máxima em Mato Grosso, impedido de ter contato até mesmo com membros de sua família. Entrevistada por Joaquim, a irmã de Adélio assegura que ele jamais faria aquilo sozinho. "Teve o empurrão de alguém", afirma.
Joaquim de Carvalho não se furta a editorializar a reportagem tanto quanto pode. Sem alarde, mas com firmeza, propugna pela reabertura de investigações sobre o possível auto-atentado como forma de empoderar o candidato para as eleições iminentes. Uma postagem de 2016 no Facebook de Eduardo Bolsonaro reclamava do silêncio da mídia sobre um possível atentado à vida de Donald Trump e completava: "Será feio [feito?] aqui também! Estejamos preparados!". Tempos depois, a deputada Joice Hasselmann diria ter ouvido de Jair a frase "Se eu levasse uma facada, ganhava as eleições".
O assunto está à espera de um esclarecimento, assim como a morte de Marielle Franco. As reações ao documentário não se fizeram tardar. Um jornalista do Intercept o criticou duramente, mas recusou-se a debater publicamente com Joaquim de Carvalho. Carlos Bolsonaro pediu uma investigação sobre o filme. Já o deputado ex-bolsonarista Alexandre Frota protocolou pedido de abertura de uma CPI da facada, tema solenemente ignorado pela mídia corporativa de Rio e São Paulo.
Enquanto isso, Bolsonaro e Adélio – Uma Fakeada no Coração do Brasil vai se transformando num hit da internet, com cerca de 700 mil visualizações acumuladas em três dias. É um sucesso merecido. O filme faz o que se espera de uma mídia combativa, que sai em campo para jogar luzes sobre pontos obscuros. Não é um trabalho com veleidades artísticas, nem de estilo, embora seja, quase sempre, muito bem finalizado. Meu maior reparo diz respeito a uma cena em que Joaquim aparece inadvertidamente diante de uma loja da rede Riachuelo. Parece merchandising involuntário de uma marca golpista."
(De Carlos Alberto Mattos, texto intitulado "Investigação sobre cidadãos sob suspeita", publicado no Boletim Carta Maior - Aqui.
O documentário - Aqui - acaba de ultrapassar 975 mil visualizações.
No frigir dos ovos, o que remanesce é o seguinte: a jogada toda funcionou no passado, agora é especular sobre o que poderá vir para a campanha de reeleição: como fazer, na impossibilidade de utilizar desbragadamente as fake news? Como fazer para escapar dos debates? Debates?! Eis aí a via crucis! O desastre em toda a sua plenitude).
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