No próximo dia 1º de abril, 'Currais' estreia no streaming e levanta o véu do esquecimento sobre episódio dramático expurgado da história oficial do país
Por Léa Maria Aarão Reis
São poucos os que conhecem essa história que se passa durante a seca no Ceará, em 1932, e faz parte da História do Brasil. Assim como tantas outras, ela foi apagada da narrativa histórica oficial em mais uma tentativa de suprimir da memória coletiva episódios nada lisonjeiros, mas com os quais talvez possamos iluminar e explicar a nós mesmos nossas raízes, as nossas escolhas e o que somos hoje: um povo que gera perplexidade no mundo pelas suas opções atuais e pelas preferências políticas que apontam para a ignorância, o egocentrismo e a brutalidade.
A história do documentário de uma hora e meia, Currais, que estreia dia 01 de abril nas plataformas de streaming - iTunes, Apple TV, Google Play, YouTube, Vivo, Now e Looke - é esta: em 1932, durante a seca no Ceará, foram criados campos de concentração no interior do estado para aprisionar e impedir que flagelados, mortos de fome, marchassem até Fortaleza, sujassem as ruas da capital e manchassem a imagem de um paraíso nordestino.
Quinze a 20 mil pessoas, homens, mulheres, crianças, foram confinados em currais montados num raio de três quilômetros, aprisionados nesse inferno e obrigados a trabalhar para os grandes barões de terras e empresas de obras da época em regime de escravatura sem receber tostão, em troca de água e comida. Aos que tentavam fugir ou se rebelavam, o destino era a tortura. Eram queimados (literalmente) pelo sol, no sebo.
Não é possível precisar quantas pessoas passaram pelos currais, que duraram até 1933. Os dados da época apontam desde 75 mil cativos, divididos entre os sete campos de concentração, até 200 mil indivíduos, com base em discurso da época de Getúlio Vargas.
A seca de 1932 no Nordeste, aliás, é citada no livro campeão de vendas neste verão, Torto Arado, de Itamar Vieira Junior lembrando um episódio no lado da Bahia: ''(...) quando os primeiros trabalhadores chegaram em Água Negra, pedindo morada. Pedir morada é quando você não sabe para onde ir, porque não tem trabalho de onde vem. Não tem de onde tirar o sustento''. (p.185). Com precisão, o livro recorda, assim como Currais, que essas questões nunca resolvidas são perpetuadas até hoje.
Forças militares, forças de segurança e instituições da sociedade civil aprisionavam essas populações deslocadas em massa, vindas também de estados vizinhos, para confiná-los no alto sertão - região de Quixeramobim, de Senador Pompeu. Atendiam aos interesses da sempiterna elite econômica deste país, das mais cruéis do mundo, que seguiam as teorias europeias de eugenia vigentes na época. Nazismo, fascismo, e no Brasil, integralismo.
O filme é o primeiro longa metragem da dupla Sabina Colares e David Aguiar, ex-alunos de Cinema e Áudio-Visual da Universidade Federal do Ceará, e recebeu o premio de melhor filme estreante da Abraccine, a Associação Brasileira de Críticos de Cinema, na 43ª Mostra Internacional de São Paulo, de 2019.
Por vezes sua atmosfera nos lembrou Botão de Pérola, de Patrício Guzmán, seu belo documentário chileno que enfatiza a importância e a necessidade da memória “como instrumento político de identidade de um país e de seus indivíduos,”ele diz.
O longa-metragem é guiado pela história de um personagem fictício, Romeu ( ator Rômulo Braga), '' filho de um remanescente do campo de Senador Pompeu que está estudando fora quando sabe da morte do avô e volta para Fortaleza. Romeu, então, se depara com vários relatos e fitas cassetes que o avô guardava", conta a diretora Sabina.
''Em alguns locais, como em Senador Pompeu, nós ouvimos relatos de que muitas vezes os confinados eram vestidos com roupas de saco e numerados, o que servia para uma administração mais eficiente ", comenta por sua vez Aguiar que acrescenta:'
''O Pirambu, segundo o próprio (interventor federal do Estado) capitão Carneiro de Mendonça, era o campo modelo. Cercado, nele as casas eram feitas de palha. As pessoas dormiam no chão ou em redes improvisadas. Eram grandes barracões feitos de zinco e palha, e construídos nas condições mais precárias".
''Havia assistência médica, mas muito aquém do necessário. Sempre tinha um hospital, mas, por exemplo, em determinado campo, você tinha um corpo médico formado por seis pessoas para cuidar de oito a dez mil cidadãos, como chegamos a ver em um relatório produzido pelo Governo Federal".
Os dois documentaristas trabalharam com pesquisa bibliográfica, levantaram arquivos, fotos, e com narrativas e lembranças de testemunhas como José Maria Tabosa, morador do Grande Pirambu. José chegou a frequentar o reduto.
Para David Aguiar, Tabosa simboliza o impacto dos campos de concentração que ''reverbera até os tempos atuais''. Diz ele: ''O próprio José Tabosa foi expulso da comunidade pela especulação imobiliária ". Sua família foi perseguida durante a ditadura de 1964.
"Esse homem, cujo pai sofreu com a organização das elites e dos militares, foi preso durante a ditadura e torturado. Ou seja, percebe-se o ciclo do retorno", completa.
Ciclo do retorno também em relação à fome que grassou e grassa ainda no país porque voltou ao Mapa da Fome do qual havia saído durante os governos progressistas do Partido dos Trabalhadores.
Como escreve o documentarista Silvio Tendler neste atual momento em que o número de pessoas famintas aumenta no país: '' Há muitos anos sabemos que a morte por inanição é uma decisão de alguns homens sobre outros homens. Comida existe em abundância, e estradas e transportes. O que separa a fome da comida é a ganância'' .
Vale portanto voltar a ressaltar o papel vital ocupado pelo gênero do filme documentário na história dos povos porque como diz outro documentarista latino-americano histórico, Patrício Guzmán, ''um país sem documentário é como uma família sem álbum de fotografias”.
A história do documentário de uma hora e meia, Currais, que estreia dia 01 de abril nas plataformas de streaming - iTunes, Apple TV, Google Play, YouTube, Vivo, Now e Looke - é esta: em 1932, durante a seca no Ceará, foram criados campos de concentração no interior do estado para aprisionar e impedir que flagelados, mortos de fome, marchassem até Fortaleza, sujassem as ruas da capital e manchassem a imagem de um paraíso nordestino.
Quinze a 20 mil pessoas, homens, mulheres, crianças, foram confinados em currais montados num raio de três quilômetros, aprisionados nesse inferno e obrigados a trabalhar para os grandes barões de terras e empresas de obras da época em regime de escravatura sem receber tostão, em troca de água e comida. Aos que tentavam fugir ou se rebelavam, o destino era a tortura. Eram queimados (literalmente) pelo sol, no sebo.
Não é possível precisar quantas pessoas passaram pelos currais, que duraram até 1933. Os dados da época apontam desde 75 mil cativos, divididos entre os sete campos de concentração, até 200 mil indivíduos, com base em discurso da época de Getúlio Vargas.
A seca de 1932 no Nordeste, aliás, é citada no livro campeão de vendas neste verão, Torto Arado, de Itamar Vieira Junior lembrando um episódio no lado da Bahia: ''(...) quando os primeiros trabalhadores chegaram em Água Negra, pedindo morada. Pedir morada é quando você não sabe para onde ir, porque não tem trabalho de onde vem. Não tem de onde tirar o sustento''. (p.185). Com precisão, o livro recorda, assim como Currais, que essas questões nunca resolvidas são perpetuadas até hoje.
O doc traz o relato de dona Francisca Mourão, última remanescente viva do campo de concentração de Pirambu, em Senador Pompeu, que nos fragmentos das suas memórias divide tristes lembranças familiares.
Forças militares, forças de segurança e instituições da sociedade civil aprisionavam essas populações deslocadas em massa, vindas também de estados vizinhos, para confiná-los no alto sertão - região de Quixeramobim, de Senador Pompeu. Atendiam aos interesses da sempiterna elite econômica deste país, das mais cruéis do mundo, que seguiam as teorias europeias de eugenia vigentes na época. Nazismo, fascismo, e no Brasil, integralismo.
Por vezes sua atmosfera nos lembrou Botão de Pérola, de Patrício Guzmán, seu belo documentário chileno que enfatiza a importância e a necessidade da memória “como instrumento político de identidade de um país e de seus indivíduos,”ele diz.
O longa-metragem é guiado pela história de um personagem fictício, Romeu ( ator Rômulo Braga), '' filho de um remanescente do campo de Senador Pompeu que está estudando fora quando sabe da morte do avô e volta para Fortaleza. Romeu, então, se depara com vários relatos e fitas cassetes que o avô guardava", conta a diretora Sabina.
''Em alguns locais, como em Senador Pompeu, nós ouvimos relatos de que muitas vezes os confinados eram vestidos com roupas de saco e numerados, o que servia para uma administração mais eficiente ", comenta por sua vez Aguiar que acrescenta:'
''O Pirambu, segundo o próprio (interventor federal do Estado) capitão Carneiro de Mendonça, era o campo modelo. Cercado, nele as casas eram feitas de palha. As pessoas dormiam no chão ou em redes improvisadas. Eram grandes barracões feitos de zinco e palha, e construídos nas condições mais precárias".
''Havia assistência médica, mas muito aquém do necessário. Sempre tinha um hospital, mas, por exemplo, em determinado campo, você tinha um corpo médico formado por seis pessoas para cuidar de oito a dez mil cidadãos, como chegamos a ver em um relatório produzido pelo Governo Federal".
Os dois documentaristas trabalharam com pesquisa bibliográfica, levantaram arquivos, fotos, e com narrativas e lembranças de testemunhas como José Maria Tabosa, morador do Grande Pirambu. José chegou a frequentar o reduto.
Para David Aguiar, Tabosa simboliza o impacto dos campos de concentração que ''reverbera até os tempos atuais''. Diz ele: ''O próprio José Tabosa foi expulso da comunidade pela especulação imobiliária ". Sua família foi perseguida durante a ditadura de 1964.
"Esse homem, cujo pai sofreu com a organização das elites e dos militares, foi preso durante a ditadura e torturado. Ou seja, percebe-se o ciclo do retorno", completa.
Ciclo do retorno também em relação à fome que grassou e grassa ainda no país porque voltou ao Mapa da Fome do qual havia saído durante os governos progressistas do Partido dos Trabalhadores.
Como escreve o documentarista Silvio Tendler neste atual momento em que o número de pessoas famintas aumenta no país: '' Há muitos anos sabemos que a morte por inanição é uma decisão de alguns homens sobre outros homens. Comida existe em abundância, e estradas e transportes. O que separa a fome da comida é a ganância'' .
Vale portanto voltar a ressaltar o papel vital ocupado pelo gênero do filme documentário na história dos povos porque como diz outro documentarista latino-americano histórico, Patrício Guzmán, ''um país sem documentário é como uma família sem álbum de fotografias”.
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"São poucos os que conhecem essa história...".
De fato.
Tempos atrás, o jornal 'O Povo', de Fortaleza, dedicou página inteira ao assunto. Não sei ao certo, mas parece-me que a partir de uma tese de mestrado apresentada por uma socióloga cearense.
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