O dia em que Franz Kafka decidiu ser escritor
Por Sebastião Nunes
– Imbecil! – berrou Hermann Kafka. – Você já tem idade suficiente pra fazer as coisas direito, seu idiota!
O pequeno Franz se encolheu e olhou o pai com grandes olhos amedrontados.
– O que foi que sua mãe mandou você comprar?
– Galinha casher.
– E o que foi que você trouxe?
– Galinha treifá.
– E você sabe a diferença entre casher e treifá?
– Sei.
– E por que não trouxe o que sua mãe pediu, imbecil?
– Esqueci.
– Esqueceu, é? Então vai pro seu quarto, apaga a luz, e só sai quando eu mandar!
O pequeno Franz obedeceu.
RAZÕES PARA ESQUECER
Na densa escuridão de seu quarto, o pequeno Franz deitou na cama, cruzou os dedos atrás da cabeça e ficou olhando para o teto. Pequenas rachaduras nas telhas deixavam passar um pouco de luz.
Aos poucos, muito lentamente, começou a aparecer lá no alto a cabeça ruiva de uma garotinha de sua idade. Ele a conhecia: era a irmã de Max Brod.
– Felice! – sussurrou o pequeno Franz. – Foi por sua causa que eu esqueci, viu? Porque você não sai da minha cabeça eu esqueci.
– Sei – disse Felice. – Mas você é muito novo pra se apaixonar. Eu também sou muito nova pra me apaixonar, mas estou apaixonada por você.
– Que bom, Felice! Vem deitar comigo, vem?
A cabeça ruiva de Felice desceu do teto e deitou ao lado do pequeno Franz.
– Arreda pra lá, Franz – disse ela. – Assim tá muito apertado.
O pequeno Franz se afastou um pouco e Felice suspirou, satisfeita. Aos poucos, deixou de ser só a bonita cabeça ruiva para ser o corpo inteiro de Felice.
RAZÕES PARA ESCREVER
– Adivinha o que decidi, Felice? – perguntou o pequeno Franz, ainda de mãos atrás da cabeça.
– O que foi? – perguntou de volta a pequena Felice, cruzando também os dedos atrás da cabeça ruiva.
– Decidi que vou ser escritor.
– Sério? Mas você ainda está aprendendo a escrever. Semana passada tirou três na prova de alemão, quatro em tcheco e só dois em iídiche.
– Isso não tem nada com ser escritor, Felice – insistiu o pequeno Franz. – Ser escritor é ter imaginação, criar personagens e inventar histórias.
– Mas se você não aprender a escrever nunca poderá descrever seus personagens. Nem contar histórias que as pessoas gostem de ler.
– Mas eu não quero contar histórias que as pessoas gostem de ler – respondeu o pequeno Franz. – Quero contar histórias que metam medo nas pessoas.
– Como o medo que você tem de seu pai?
– É. Vou transformar meu pai num bicho cabeludo e nojento.
– Hum... Cuidado pro feitiço não virar contra o feiticeiro.
– Como assim?
– E se for você que, certa manhã, acorda como um bicho cabeludo e nojento?
– Não tem perigo, Felice – disse o pequeno Franz. – Quem escreve é que decide quem vai ser o bicho cabeludo e nojento.
RAZÕES PARA VIVER
– Além disso, Felice, tem muito mais – continuou o pequeno Franz. – Quero inventar um faquir que não gosta de comida.
Felice riu.
– Então não tem graça ele ser faquir. Se não gosta de comida...
– Quero inventar também um castelo misterioso, cheio de entradas e saídas, mas que ninguém pode entrar nem sair.
– Aí já parece história de bruxa.
– Mas não é história de bruxa. É de terror.
– Tem mais?
O pequeno Franz continuou de dedos cruzados atrás da cabeça.
– Tem muito mais – disse o pequeno Franz. – Tem tanta história misturada na minha cabeça que não sei se vou dar conta de escrever tudo.
– Mas antes você tem de aprender a escrever direito.
– Sei disso, Felice – respondeu o pequeno Franz. – Não seja estúpida como o meu pai. Claro que se não escrever direito nunca poderei contar direito minhas histórias.
– Eu não sou estúpida! – protestou Felice. – Você e seu pai é que são.
O FIM DO CASTIGO
De tanto conversar com a ruiva Felice o pequeno Franz acabou dormindo. Só acordou com o vozeirão do pai:
– Cai fora desse quarto, Franz. Deixa de ser preguiçoso.
O pequeno Franz abriu os olhos e olhou para o teto. Entre os raios de luz do fim de tarde a cabeça da ruiva Felice sorria para ele.
O pequeno Franz sorriu de volta. Sim, seria escritor e, entre outras coisas que tinha de escrever, precisava inventar um jeito de se vingar desse velho que tinha força, saúde, comia como um porco e gostava de mandar em todo mundo. - (Fonte: aqui).
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O pequeno Franz sabia, sim, a diferença entre comida casher e comida treifá, mas, obnubilado pelo amor a Felice, teve um branco e acabou por errar na compra.
Mas, o que é esse negócio de alimentação casher (kasher/kosher), treifá, kashrut? Clique AQUI.
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