Após publicado o artigo abaixo, Fábio Ribeiro, seu autor, aduziu: "Esqueci de mencionar os espetáculos do direito penal colonial escravocrata. Eles eram tão comuns que foram registrados por Jean-Baptiste Debret. Os colonos certamente ficavam satisfeitos ao ver as punições corporais impostas aos escravos condenados serem executadas por negros (de alma branca, como se dizia). Além de causar terror no respeitável público cativo que observava o suplício do condenado, a execução da pena fomentava o ódio entre os negros (e isto certamente facilitava a preservação do regime escravocrata que enriqueceu uns poucos homens livres).
Se favelas são as novas senzalas, como disse Lobão, devemos admitir a hipótese de que os PMs são os novos negros de alma branca encarregados de supliciar seus iguais. Sendo assim, é natural que os espetáculos de violência punitiva nas favelas sejam televisionados. Vejam o que vocês fazem a si mesmos e nos deixem em paz, dizem com as imagens os herdeiros da colônia, que se beneficiam da recorrência do direito penal colonial."
O novo processo penal do espetáculo com Raul Seixas no final
Por Fábio de Oliveira Ribeiro
Em livros recentemente publicados e em textos divulgados na internet, alguns deles aqui mesmo no GGN, tenho visto juristas de renome criticando o “processo penal do espetáculo” e o lawfare. Estas seriam as novidades trazidas ao mundo pelo neoliberalismo que estariam se consolidando no Estado Pós-Democrático.
O fenômeno é realmente assustador, mas não me parece que ele seja novo.
A noção de espetáculo processual penal foi levada à perfeição pelos romanos. No Coliseu e em arenas menores que existiam por todo o império, os condenados comuns eram devorados por feras trazidas da África antes do início dos combates entre os gladiadores. Os próprios gladiadores podiam ser romanos livres que, vendidos como escravos em razão de suas dívidas, acabaram sendo comprados e treinados num Ludus em virtude de sua juventude e aptidão física. (Nota deste blog: Ludus Magnus: a grande escola de gladiadores - aqui).
Imaginem 40 mil romanos urrando de prazer ao ver as feras devorarem os malfeitores ou exigindo a morte de um Samnita covarde que recusou o combate diante de seu adversário tradicional (o Retiário). Imaginaram? Pois bem… Imaginem agora 40 milhões de pessoas vendo o Jornal Nacional atacar ferozmente um inimigo do clã Marinho durante 10 ou 15 minutos. Os jornalistas e especialistas convidados se revesando para não cansar o respeitável público, reforçando mutuamente seus argumentos e, em uníssono, exigindo a condenação imediata do malfeitor e sua prisão inevitável. Imaginaram? Pois bem...
A única diferença entre os dois espetáculos (o antigo e o moderno) é qualitativa. O espetáculo processual penal encenado no Jornal Nacional se desloca para a casa do espectador. Ele não precisa como um romano ir pessoalmente até a arena para ver o direito penal (no caso do condenado) e o direito civil (no caso do gladiador) atuarem sobre os corpos dos condenados.
O (espetáculo) da condenação era especialmente doloroso e público quando aplicado pelos generais romanos aos seus subordinados. Os soldados preguiçosos, covardes, indisciplinados e traidores podiam ser vergastados, submetidos ao garrote, obrigados a engolir chumbo derretido ou empurrados num abismo, sempre diante dos seus amigos. O efeito da pena era sempre duplo: ele atingia o condenado e aterrorizava os demais soldados.
Nada é mais repugnante do que ver um pai matar o próprio filho. No entanto, Tito Lívio narra o episódio em que um cônsul romano condenou seu próprio filho (Tito Mânlio) a ser amarrado num poste e decapitado porque ele venceu o inimigo numa escaramuça que não havia sido autorizada.
A técnica romana da condenação criminal espetacular atingiu um clímax quando Crasso mandou crucificar mais ou menos 6 mil escravos derrotados que haviam se rebelado sob comando de Espártaco. O espetáculo dos corpos pendurados em cruzes se estendeu pela Via Ápia de Cápua até Roma. Aqueles que faziam este percurso por razões pessoais ou econômicas, muitos deles escravos, tiveram a oportunidade única de presenciar um suplício interminável. E foram também obrigados a sentir o cheiro nauseabundo daqueles corpos mortos lentamente se decompondo à luz do sol.
Numa das províncias romanas, a Judeia, o processo penal sempre resultava no espetáculo da crucificação. Os inimigos, amigos e parentes do condenado podiam observar, apreciar ou lamentar a execução da pena. Este tipo de espetáculo se tornou tão comum na Judeia que uma nova religião nasceu justamente por causa de um agitador até então desconhecido em Roma que foi condenado a ser crucificado no Monte das Oliveiras.
Ironicamente os responsáveis por organizar e manter a religião daquele infeliz crucificado também se transformaram em adeptos dos processos penais espetaculares. Durante a Idade Média os suspeitos e culpados eram sempre enforcados, afogados e queimados na fogueira diante do respeitável público. Os pobres europeus eram assim obrigados a aprender a temer a Deus e, sobretudo, a respeitar o poder secular ilimitado exercido pelos padres e bispos católicos.
Os espetáculos penais chegaram ao Brasil com a Inquisição. E não por acaso ao chegar à colônia, Tomé de Sousa fez uma demonstração espetacular de seu poder ao mandar despedaçar alguns índios na boca do canhão. Imaginem a cena…
Um pobre índio sendo levado e amarrado na peça de artilharia que havia sido adequadamente carregada. O vice-rei faz seu discurso em português castiço, uma língua que os mamelucos e indígenas presentes provavelmente não entendiam. Os soldados coloniais encarregados da execução ansiosos, porque provavelmente nunca antes haviam visto algo semelhante. Continuem imaginando.
Vestido a caráter, chapéu adornado com plumas na cabeça, o vice-rei dá o comando. A tocha se aproxima lentamente do ouvido do canhão. A pólvora entra em ignição, um estrondo e o corpo do índio é despedaçado pelo projétil. Segundos antes ele estava vivo provavelmente gritando imprecações em sua própria língua. O silêncio após o disparo é geral. O índio está morto, os pedaços dele espalhados nas proximidades. Lambuzadas de sangue, de urina ou de fezes, as pessoas que estavam mais próximas do canhão se retiram ruminando desprezo ou satisfação.
O espetáculo tem que continuar. Séculos depois o alferes Tiradentes seria condenado, enforcado, esquartejado e seus pedaços espalhados pela colônia.
“JUSTIÇA que a Rainha Nossa Senhora manda fazer a este infame Réu Joaquim José da Silva Xavier pelo horroroso crime de rebelião e alta traição de que se constituiu chefe, e cabeça na Capitania de Minas Gerais, com a mais escandalosa temeridade contra a Real Soberana e Suprema Autoridade da mesma Senhora, que Deus guarde.
MANDA que com baraço e pregão seja levado pelas ruas públicas desta Cidade ao lugar da forca e nela morra morte natural para sempre e que separada a cabeça do corpo seja levada a Vila Rica, donde será conservada em poste alto junto ao lugar da sua habitação, até que o tempo a consuma; que seu corpo seja dividido em quartos e pregados em iguais postes pela estrada de Minas nos lugares mais públicos, principalmente no da Varginha e Sebollas; que a casa da sua habitação seja arrasada, e salgada e no meio de suas ruínas levantado um padrão em que se conserve para a posteridade a memória de tão abominável Réu, e delito e que ficando infame para seus filhos e netos, lhe sejam confiscados seus bens para a Coroa e Câmara Real. Rio de Janeiro, 21 de abril de 1792, Eu, o desembargador Francisco Luiz Álvares da Rocha, Escrivão da Comissão que o escrevi. Sebão. Xer. de Vaslos.”
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O espetáculo desta execução penal segue servindo de paradigma para a atuação da nossa triste justiça colonial. Para atender a Rede Globo, legítima representante da Embaixada dos EUA no Brasil. O réu José Dirceu (condenado porque não provou sua inocência) foi desnecessariamente transportado de São Paulo para Brasília. Ele tinha que ser filmado algemado, tinha que ser visto descendo do avião e chegando à Papuda. Se pudessem separar a cabeça dele de seu corpo, para pendurá-la no mastro de uma bandeira qualquer, o espetáculo teria sido completo.
Lula disse recentemente que a imprensa dá um tiro de canhão nele todo dia. Ele está rigorosamente certo: a imprensa e a Justiça estão despedaçando ele na boca do mais atroz e moderno de todos os canhões, aquele que desumaniza a vítima antes dela ser tratada de maneira desumana. Desgraçadamente o canhão usado contra o Lula não é real, diriam alguns jornalistas globais e milhões de telespectadores ávidos para ver o triunfo do velho processo penal romano, medieval e colonial.
É por isto que não posso concordar com os juristas que dizem que estamos diante de uma inovação. Esta porra toda que estamos vendo é muito antiga, velha demais mesmo, mano. Pronto, depois de falar sério resolvi surtar. A imprensa, os juízes e os juristas “jogaram minha cabeça oca no lixo da cozinha” https://www.youtube.com/watch?v=PRZa3c6y07M e, então, eu também vou reclamar https://www.youtube.com/watch?v=a0pHi0jMdOk. - (Fonte: Jornal GGN - aqui).
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