segunda-feira, 2 de outubro de 2017

CRÔNICA DO TEMPO EM QUE HAVIA UMA CARÊNCIA ABSURDA DE CANALHAS E VIGARISTAS


O juiz ladrão

Por Nelson Rodrigues

De vez em quando, eu esbarro num saudosista. É um sujeito esplêndido, que vive enfiado no passado. Direi mais: — vive feliz e realizado no passado como um peixinho num aquário de sala de visitas. E convenhamos que isto é bonito, é lindo. Outro dia, um deles atracou-se comigo no meio da rua; arrastou-me para o fundo de um café, e, lá, com o olho rútilo e o lábio trêmulo, pôs-se a falar de Marcos de Mendonça, o “Fitinha Roxa”; da “espanhola”; do assassinato de Pinheiro Machado e do campeonato que o Botafogo tirou em 1910. Mas, nos vinte minutos da conversa retrospectiva, já lhe pendia do beiço uma grossa, uma espuma bovina, uma baba elástica. De mim para mim, compreendi essa nostalgia, louvei essa fidelidade ao passado. Amigos, eis uma verdade eterna: — o passado sempre tem razão.
Por exemplo: — o futebol antigo. Era, a meu ver, um fenômeno vital muito mais rico, complexo e intrincado. Hoje, os jogadores, os juízes e os bandeirinhas se parecem entre si como soldadinhos de chumbo. Não encontramos, em ninguém, uma dessemelhança forte, crespa e taxativa. Não há um craque, um árbitro ou um bandeirinha que se imponha como um símbolo humano definitivo. Outrora havia o “juiz ladrão”. E hoje? Hoje, os juízes são de uma chata, monótona e alvar honestidade. Abrahão Lincoln não seria mais íntegro do que Mário Vianna. E vamos e venhamos: — a virtude pode ser muito bonita, mas exala um tédio homicida e, além disso, causa as úlceras imortais. Não acredito em honestidade sem acidez, sem dieta e sem úlcera.
Mas ponha-se um árbitro insubornável diante de um vigarista. E verificaremos isto: — falta ao virtuoso a feérica, a irisada, a multicolorida variedade do vigarista. O profissionalismo torna inexequível o juiz ladrão. E é pena. Porque seu desaparecimento é um desfalque lírico, um desfalque dramático para os jogos modernos.
Vejam vocês que coisa melancólica e deprimente: — um jogo de futebol tem 22 homens. Com o juiz e os bandeirinhas, 25. Acrescentem-se os gandulas e já teremos um total de 29. Vinte e nove homens e nem um único e escasso canalha, nem um único e escasso vigarista! Eis a verdade, que levaria um Balzac ao desespero e à úlcera: — as condições do futebol contemporâneo tornam impraticável a existência do canalha. Ou por outra: — o canalha pode existir, mas contido, frustrado, inédito, sem função e sem destino.
Mas em 1918, 17 ou 16, os gatunos constituíam uma briosa fauna, uma luxuriante flora. Evidentemente, havia as exceções. Mas os salafrários podiam apitar as partidas e com que glorioso, com que genial descaro! Certa vez, foi até interessante: — existia um juiz que era um canalha em estado de pureza, de graça, de autenticidade. Um domingo, ele vai apitar um jogo decisivo. Que fazem os adversários? Tentam suborná-lo. Ora, o canalha é sempre um cordial, um ameno, um amorável. E o homem optou pela solução mais equânime: — levou bola dos dois lados. Justiça se lhe faça: — roubou da maneira mais desenfreada e imparcial os dois quadros. Ao soar o apito final, os 22 jogadores partiram para cima do ladrão. Mas o gângster já se antecipara, já estava pulando muros e galinheiros. Era uma figurinha elástica, acrobática e alada. Isto foi em 1917. O juiz gatuno está correndo até hoje.  -  (Fonte: aqui).

....
Crônica publicada na Manchete Esportiva, em 31 de dezembro de 1955; que depois integrou o livro "À sombra das chuteiras imortais", publicado em 1993, com crônicas rodrigueanas selecionadas por Ruy Castro. Nota na contracapa: 

"Do brasileiro vira-lata ao brasileiro orgulhoso de ser brasileiro — esta é a trajetória contada por Nelson Rodrigues nas setenta crônicas de À sombra das chuteiras imortais. Elas cobrem o período que vai da Copa do Mundo de 1950, em que a derrota do Brasil para o Uruguai em pleno Maracanã reforçou a péssima imagem que o brasileiro fazia de si mesmo, à Copa de 1970 no México, a do tricampeonato — passando pela emoção de todas as Copas que vieram no meio e que ajudaram o Brasil a se transformar como nação. Mas não é só quando trata da seleção que Nelson faz do futebol um teatro que envolve todas as paixões humanas. Ao falar de um reles Flamengo X Canto do Rio ou do velório de um velho jogador obscuro, ele está apenas usando o futebol como um pretexto para mergulhar em suas obsessões: o heroísmo e o medo, a multidão e o indivíduo, a vida e a morte." 

Entreouvido inconveniente e pernicioso:

- E por acaso não temos, hoje em dia, juízes parciais, que marcam pênalti (teimam em dizer que o certo é penálti, mas não aceitamos), que, repetindo, marcam pênalti sem fundamento e ainda indeferem sumariamente qualquer protesto ou ponderação do time injustiçado, juízes que se 'banham' sofregamente na fogueira das vaidades, juízes que pré julgam e condenam a priori e que pouco estão ligando para eventuais 'despachos saneadores' proferidos pelo STJD, ou até mesmo punição severa emanada da suprema CBF?! Juízes parciais existem, sim, o resto é figuração.

Nenhum comentário: