quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

A GRANDE PALADINA


Internet balança ditaduras, mas sofre ameaças

Marcelo Semer

A Revolução dos Jasmins, que ameaça romper uma a uma as arcaicas ditaduras do mundo árabe, descortinou o imenso potencial mobilizador da Internet.

A notícia boa é que a web efetivamente aglutina e as redes sociais servem a propósitos muito mais relevantes do que os exercícios de narcisismo a que seus usuários são costumeiramente acusados.

A notícia ruim é que os donos do poder já perceberam isso.

A censura chinesa virou café pequeno diante da interrupção quase total da Internet no Egito.

Era tarde, os jovens revoltosos já haviam se mobilizado o suficiente antes dela. Mas não deixa de ser um alerta poderoso para todos aqueles que apostam no caráter libertário de uma rede sem controle. Se um interruptor pode ser desligado assim tão facilmente, estaríamos nós construindo a liberdade sobre um castelo de cartas?

Regimes costumam ruir como pedras que se empurram em efeitos dominós. A história nos mostrou como uma América Latina inteira caiu, e depois saiu de ditaduras, e o Leste Europeu também desabou em cascata com o início da Perestroika.

Em nenhuma dessas rupturas, de fato, havia internet ou redes sociais, nem sequer a agilidade da telefonia celular. Mas as ferramentas de comunicação mais modernas podem fazer anos ou meses se transformarem em dias - e, em certos casos, isso faz toda a diferença.

Entre os efeitos irreversíveis da globalização, movida, sobretudo, pelo interesse na expansão contínua de mercados consumidores a suprir recessões dos países industrializados, está justamente a redução de distâncias e eliminação de diferenças regionais.

A expansão desenfreada da comunicação por satélites e as transmissões por celulares põem o mundo inteiro a par, instantaneamente, das flores que vencem canhões, sendo este um forte fator mobilizador em outras paragens: as ditaduras raramente sobrevivem a comparações tão impactantes, principalmente quando o povo perde o medo.

Por tudo isso, e independente do quão rápido e quão profundas sejam as mudanças no mundo árabe, defender o direito à comunicação é defender a democracia. Lá ou aqui.

Já nem se trata apenas da liberdade de expressão, do qual o acesso à informação é umbilicalmente dependente. Mas do direito coletivo à comunicação, conquista recente, mas já irrenunciável. Trata-se de um direito que expande fronteiras e que só se sustenta quando internacionalmente acolhido. Assim que compreendamos que a censura à internet no Cairo também nos atinge em São Paulo.

A expansão dos direitos humanos internacionais, entre pactos, tratados e novos tribunais, também deve se ocupar da comunicação on-line entre os povos; armas de destruição de mídias acabarão por entrar na agenda dos organismos internacionais. O direito de todos é tolhido quando alguns telefones ficam surdos e a web sai do ar censurada em qualquer canto.

Infelizmente não são apenas ditadores que ameaçam a construção da Internet livre.

Defensores da neutralidade na rede apontam a criação de duplos tráfegos como forma de reduzir a pó este espaço igualitário. Se as informações de grandes grupos circulam por poderosas autoestradas e os blogs apenas em estreitas vicinais, dificilmente poderemos dizer que construímos um direito para todos.

A concentração das empresas de comunicação, formatadas em grandes grupos econômicos, e muitos deles também políticos, estimula a efervescência anárquica da web, destinada justamente a suprir o esquálido pluralismo da mídia tradicional.

Mas festejando a liberdade de transformar cada blogueiro ou tuiteiro em um potencial meio de comunicação de massa, temos privilegiado a proliferação do conteúdo, deixando talvez de atentar para a compressão dos caminhos. Jardins murados, como os equipamentos que só se comunicam com seus similares ou acessos diferenciados e tarifados à internet, podem representar sérias restrições ao livre trânsito.

Entre nós, alguns obstáculos anteriores a serem supridos. A incapacidade econômica ainda mantém dois terços dos usuários da internet distantes da banda larga, cuja popularização é promessa de campanha.

Enquanto isso, se mostra incompreensível a draconiana postura da Anatel de multar e apreender equipamentos de roteador compartilhados, equiparando usuários desses "plugadinhos" a provedores não-oficiais.

A universalização do acesso, mais do que nunca, deve se sobrepor à contumaz e previsível criminalização da pobreza.

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Marcelo Semer é Juiz de Direito em São Paulo. Foi presidente da Associação Juízes para a Democracia. Coordenador de "Direitos Humanos: essência do Direito do Trabalho" (LTr) e autor de "Crime Impossível" (Malheiros) e do romance "Certas Canções" (7 Letras).

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