quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011
É ISSO
Por Amilcar Bettega
« O importante é ir até o fim », foi essa frase que ficou. A princípio, a única que ficou. Se bem que puxando um pouco pela memória, a coisa começa a vir : « não se sabe exatamente aonde, mas é preciso ir », ela poderia ter dito. Talvez até tenha dito, vale lembrar que quem decide aqui é a memória.
« O importante é ir até o fim, mesmo que a gente não saiba aonde, mas no momento em que se começa é preciso ir até o fim ».
Ela está lá, sentada diante de uma plateia atenta. Não numerosa, mas uma assistência interessada, e é isso que conta. Sua voz é segura, seu rosto um pouco tenso, quase antipático. Na defensiva, parece. Suas mãos tremem um pouco. Ela fala do que lhe é mais caro, talvez por isso o leve tremor nas mãos.
Ela diz : « a gente tenta, é o que se faz, se tenta, a gente sabe que tem uma coisa ali, a gente sabe que tem uma coisa aqui (ela leva a mão à garganta, mas parece se arrepender e a recolhe rápido) e que precisa dizer de alguma forma ».
Ela para. Parece pensar no que acaba de dizer. Ou está simplesmente cansada. Talvez as duas coisas juntas. E o silêncio. Disse aquilo e parou.
« Precisa dizer de alguma forma », é o resto de frase que fica, que parece flutuar, ecoando na cabeça de todos que ali esperam que ela continue, que dê sequência à frase.
Mas no fundo já está tudo dito. « Alguma forma », as palavras ainda estão ali, soltas, ainda sendo remoídas, como que criando espaço no pensamento. No seu e no do público que vai, por assim dizer, no embalo, junto com ela. « Forma, alguma forma ». Poderia terminar aí. Todos poderiam ir embora com aquele resto de frase a martelar na cabeça e o dia estava ganho.
No fundo todos sabem que já não vem muita coisa depois, a não ser, talvez, um ataque de silêncio. Alguns até pensam em levantar e ir embora.
Mas então ela retoma, ainda mais cansada (ao que parece) do que antes : « a gente tenta, tateia, vai por aqui, por ali e , de repente 'é isso', a gente acha. De repente, a coisa acontece e a gente se dá conta : 'é isso'. Pois a escrita é este 'é isso'. Nada mais do que este 'é isso' ».
*
Foi no Beaubourg, o Centre Pompidou, em Paris. Fazia frio, era uma noite de inverno ( a memória começa a buscar detalhes). Annie Ernaux disse isso e ficou olhando para o vazio, como se não tivesse ninguém diante dela. Fazia frio, inverno já longe (vai ser difícil precisar o ano, menos ainda de como e por que isso veio de lá agora).
Amilcar Bettega é escritor, autor de O vôo da trapezista, Deixe o quarto como está e Os lados do círculo(livro vencedor do Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira em 2005).
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