"Alguém se habilita a escrever a breve estadia de Bolsonaro sob inspiração d’”A Montanha Mágica” de Thomas Mann? O projeto original de Thomas Mann foi escrever uma peça satírica sobre o mundo de ricos tuberculosos e cosmopolitas em uma clínica de Davos. O romance finalmente publicado em 1924, que valeu ao escritor a indicação ao Prêmio Nobel de Literatura, não assumiu a forma da sátira. É um romance de despedida, que rejeitou o passado burguês, mas não anunciou o futuro.
A 1ª Guerra Mundial acabou por impor a lógica de uma atormentada dialética não-resolvida e condensada nas agruras de Hans Castorp, um engenheiro que foi a Davos por curta estadia e lá viveu por seis anos em um ambiente-síntese dos dilemas da época. “A Montanha Mágica” é um romance de formação, que deixa em aberto qual individualidade será assumida por Castorp no contato com personagens representantes das perspectivas em vigor. Settembrini liga-se ao racionalismo liberal. Naphta, a um tipo de ditadura religiosa do proletariado. Mynheer, ao hedonismo. Nada se resolve. Ao fundo, o colapso burguês liberal, a guerra que Castorp aceita ao se alistar. A doença é o sintoma agudo de uma crise civilizacional.
Hoje Davos é uma quase aldeia luxuosa e sonolenta, que acolhe periodicamente super-ricos, que despejam obviedades sobre a pobreza, crise econômica e ecológica e agarram-se a inovações tecnológicas como solução definitiva dos males desse mundo. Em geral, fazem acompanhar-se por governantes subservientes, que lamentam a crise da democracia; por intelectuais, que dão um toque de pluralismo inócuo; e por celebridades, que se pavoneiam com atos de filantropia. Um momento de aliviar a alma, pesarosa com o estado do mundo.
E Bolsonaro nesse cenário?
Figura patética e perigosa, ele tem seus préstimos para a trupe cosmopolita de abonados. Por contraste, estes podem se ver e ser vistos como seres humanos razoáveis, preocupados com o destino da humanidade e do planeta.
À comitiva presidencial cabem alguns papéis, em geral mal-costurados, pois os figurantes mal cabem nas calças de tão grotescos. Moro repetiu as bobagens da Lava Jato, da transparência e da luta contra corrupção. Na presença do Capo? Eduardo, o filho turbinado, candidato de si mesmo à liderança da extrema direita sul-americana, falará sobre conflitos na fronteira entre o estado de Roraima e Venezuela, mais um tema patrioteiro a encobrir, agora, as possíveis conexões das suspeitíssimas relações do lacrimejante Flavio Bolsonaro (o que respinga no conjunto do clã) com o "Escritório do Crime", constituído por milicianos. Em seus desvarios inspirados em Olavo de Carvalho, Ernesto Araújo substituirá Trump, que não compareceu ao convescote? Guedes aparentemente calou-se, a não ser que tenha se refugiado em algum canto do saguão do hotel ou em algum lugar de máxima privacidade como um banheiro, onde aos sussurros reafirmará a vocação neocolonial brasileira. O discurso de sete minutos de Bolsonaro, um a menos que o longo romance de Irwing Wallace com a descrição do orgasmo de uma mulher que decide quem será o companheiro por toda vida, resultou em fiasco digno de coito interrompido, onde todos ficam insatisfeitos. Como disse Robert Shiller, prêmio Nobel de Economia de 2013, o Brasil merece algo melhor. E sintetizou: dá medo.
É o que temos, mas é suficiente para um romance com todos os elementos caros a Thomas Mann: situação de crise civilizacional, horizonte de guerra, a destruição de um país, um clã afundado em problemas de todo tipo (só a relação familiar renderia vários capítulos), ambiente focalizado (imaginem o hotel), os telefonemas frenéticos de ultramar, a claustrofobia e a tensão na aeronave presidencial, as lamúrias, o rancor e até o silêncio providencial de Moro a afiar adaga.
Tecnicamente, para a escritura, duas perspectivas se oferecem: imaginem o fluxo contínuo de pensamento de Bolsonaro, não no sentido do Ulisses joyceano, mas de um idiota no sentido grego da palavra (alguém incapaz de viver, participar da “polis”); um idiota do mal, o inverso d‘“O Idiota” de Dostoievski.
A segunda perspectiva seria dada por uma personagem secundária. Um garçom ou uma camareira. Brasileiros. Por exemplo, refugiados do colapso econômico dos anos Temer. Ou, na esteira de Brecht, por operários alfabetizados, que apenas fazem perguntas.
A cena final não se confunde com a de Castorp, que desaparece em meio a uma batalha, mas culmina com a imagem do solitário Bolsonaro em um restaurante popular: um outsider rejeitado, cujo destino se decide em distantes quartéis tropicais.
Alguém se habilita?"
(De Carlos Roberto Winckler, post intitulado "Davos, Bolsonaro: um romance possível", publicado no GGN - aqui.
Segundo a crítica, 'A Montanha Mágica' é um livro complexo, desinteressante mesmo, que não empolgou nem um pouco. Faz sentido).
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