O julgamento de Dilma, parte 5: a armação do cenário
Por Raimundo Rodrigues Pereira
Antigamente era assim: se torturava a bruxa para que ela confessasse ter matado o papa sem antes se verificar sequer se o papa estava vivo ou morto. Hoje, não: para se condenar alguém, três cuidados são fundamentais: 1) é preciso mostrar algo como um cadáver, ou seja, o crime tem de ser concreto, material; 2) não existe crime sem lei anterior que o defina – ou seja, não se pode fazer ou mesmo interpretar uma lei com vigência retroativa, para prender alguém por um crime praticado antes dela ou de sua nova interpretação; e 3) se a autoria do crime é contestável ou difícil de definir, na sua investigação para julgamento é preciso preservar o cenário no qual ele ocorreu. Nos três capítulos finais de nossa série trataremos desses três aspectos do "crime" imputado à presidente Dilma Rousseff.
Até agora, o processo de impeachment da presidente cumpriu várias fases preliminares, digamos assim: a da aceitação da denúncia pela Câmara e também pelo Senado; a da produção de provas do crime, realizada pela Comissão Especial do Impeachment (CEI), do Senado; e, na última terça-feira, dia 9 e madrugada do dia 10, os senadores da República votaram pela chamada "pronúncia", a última dessas preliminares: em termos jurídicos, a transformação da acusada em ré, mulher a ser julgada. Para a pronúncia bastavam 41, maioria simples, dos 80 senadores presentes. Foram bem mais, 59 senadores. 21 votaram contra. Ocorreram ainda duas votações nas quais 58 votaram contra e 22 a favor: uma era pela retirada da acusação pelos atrasos de pagamento ao Banco do Brasil por despesas do Plano Safra; outra, pela retirada de um dos três decretos de crédito suplementar assinados pela presidente; ambas as acusações foram mantidas, portanto.
A etapa a seguir, porém, é mais grave. Não basta que os senadores considerem, como fizeram na decisão de agora, que existem indícios suficientes para julgá-la. Eles terão de tomar posição, responder à seguinte pergunta: "A presidente cometeu ou não crime de responsabilidade?". Pelo menos 54, dois terços dos senadores, terão de comparecer e dizer sim, na sessão de conclusão do julgamento no plenário do Senado, prevista para o final deste mês. O presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, será o juiz. Serão ouvidas novamente testemunhas dos dois lados, acusação e defesa. Será como uma sessão de um tribunal de júri popular, no qual os senadores funcionarão como os jurados. E se, na soma dos contra mais abstenções e ausências forem 28 senadores, Dilma Rousseff volta ao cargo. Ela tem dito, aliás, que não voltaria para ficar, mas para tentar convocar eleições gerais, única forma que vislumbra para pacificar o País.
Na nossa trilogia final, como já dissemos, veremos se os três cuidados básicos para o julgamento foram cumpridos: 1) se o crime existe de fato; 2) se a lei no qual foi enquadrado existia antes dele ou foi criada depois, pelos inimigos da presidente; e 3) se a cena do crime investigado não foi adulterada. E é desta última que cuidaremos inicialmente, pois nos parece que os termos da pronúncia a desvirtuam quase que por completo. O senador Antônio Anastasia (PSDB-MG), relator da CEI, é quem assina o documento lido e aprovado pelo plenário do Senado com o qual foi aberta a cortina final do espetáculo. Ele diz: "É o contexto que revela a importância e relevância do que está sendo objeto de julgamento pelo Senado Federal, pois situa os fatos nas suas devidas dimensões econômica e política".
Pois bem: quais são, a seu ver, essas "devidas dimensões"?
1.
Anastasia apresenta e comenta vários gráficos sobre a evolução da economia e das contas do governo nos últimos tempos. O primeiro deles é sobre a evolução da chamada "dívida bruta do Governo Federal", de 2002 a 2015. Ele diz: "Pode-se observar que, em percentual do PIB, essa dívida vinha sendo paulatinamente reduzida desde o início da série apresentada até que, a partir de 2014, passa a crescer de modo preocupante. Ao final de 2015, a dívida bruta do Governo Federal atinge 62,3% do PIB, o que corresponde a R$ 3,7 trilhões."
Anastasia apresenta e comenta vários gráficos sobre a evolução da economia e das contas do governo nos últimos tempos. O primeiro deles é sobre a evolução da chamada "dívida bruta do Governo Federal", de 2002 a 2015. Ele diz: "Pode-se observar que, em percentual do PIB, essa dívida vinha sendo paulatinamente reduzida desde o início da série apresentada até que, a partir de 2014, passa a crescer de modo preocupante. Ao final de 2015, a dívida bruta do Governo Federal atinge 62,3% do PIB, o que corresponde a R$ 3,7 trilhões."
Anastasia desce a detalhes. Explica: no gráfico são representados, como porcentagem do PIB, não só o total da dívida e as despesas com juros, mas também o chamado superávit primário, ou resultado primário, um dos termos mais usados em toda a discussão do impeachment. Ele destaca as despesas com juros em 2015: 428,2 bilhões de reais. E continua, didático, explicando que o resultado primário é o esforço do governo para pagar suas despesas com juros; para impedir que a dívida comece a crescer sem controle e os credores passem a pressionar o governo por mudanças, poderia ter dito também.
Mas o importante não é o que Anastasia diz e que todos sabem e com o que concordam. O importante é o que ele não diz ou não destaca. Ele não diz, por exemplo, que os 62,3% da dívida bruta como porcentagem do PIB do governo Dilma no final de 2015 eram menores do que os 64,9% da mesma dívida no final de 2002, último ano do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso. Destaca a dívida bruta de 3,7 trilhões de reais mas não fala da dívida líquida do governo, porque teria de descontar do número gigante que apresenta os mais de 377 bilhões de dólares de reservas monetárias brasileiras, as quais, com a desvalorização cambial recente, com o dólar a mais de três reais, valem cerca de 1,2 trilhão de reais. A dívida líquida é bem menor, em porcentagem, cerca de 30% menos que dívida bruta, portanto.
Anastasia destaca a brutal carga de juros paga em 2015, mas não diz uma palavra sobre o grande destaque do governo Dilma que foi a agressiva tentativa de derrubar os juros, ocorrida em nove reuniões sucessivas do Comitê de Política Monetária de seu governo. Nessa operação, a taxa de juros de curto prazo do Banco Central, de 12,5%, foi levada, ao longo de vinte meses, entre julho de 2011 e março de 2013 – para 7,25%, seu menor patamar em vinte anos.
Anastasia diz ainda no relatório aprovado pelo Senado: "Em termos de crescimento do PIB, nunca tivemos um desempenho tão ruim", referindo-se à queda do PIB de 2015, de 3,8% e à nova queda prevista por ele para este ano. Isso daria, ele diz, "uma queda acumulada" de 7,0% no período. Seria um fato sem "paralelo em nossa história". Ele continua: "O único momento em que o PIB brasileiro apresentou queda consecutiva por dois anos seguidos, desde o início do século XX, foi no biênio 1930-1931, logo após o disparo da crise econômica mundial, deflagrada pelo colapso (crash) da Bolsa de Nova Iorque em 1929".
Por que Anastasia diz isso: por ignorância ou má-fé? Por ignorância? É pouco provável. Vejam, gráfico que ele apresenta é uma armação com dados do IBGE, que ele cita como fonte. Só que os números da variação do PIB do IBGE estão disponíveis para quem quiser ver.
O IPEAdata, serviço on-line de informações do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada do governo federal tem um gráfico construído com esses dados. Vejam:
E nesse gráfico lá está, com toda clareza: o PIB brasileiro tem 13 quedas para baixo do zero %, de 1900 até o ano passado. Várias, como a crise de 1929-1930, também foram gravíssimas: a de 1981-1983 levou à queda da ditadura militar; a de 1991, a saques monumentais na periferia paulistana. E não se pode esquecer a crise dos anos 1998-1999, período no qual o PIB cresceu praticamente zero (0,04% e 0,25%, respectivamente).
A omissão da crise 1998-1999 é de um silêncio gritante. Esse foi o período no qual o governo Fernando Henrique Cardoso, em conluio com o governo americano e o Fundo Monetário Internacional – diga-se, pelas costas do Congresso Nacional e do povo brasileiro que o iria reeleger no final de 1998 e, portanto, não poderia saber da trama – definiu os termos da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Anastasia parece tentar provar a tese de que seu partido, o PSDB, estabilizou a economia e a moeda nacionais, feito extraordinário que teria sido desmanchado pelos desmandos petistas. Os fatos, porém, não são esses. Em fins de 1994, com o Plano Real, o governo do PSDB chefiado por Fernando Henrique Cardoso ancorou a moeda brasileira num grande volume de dólares atraídos para o País e transformados em reservas monetárias graças às maiores taxas de juros pagas no planeta, aproveitando-se da política de juros altos inaugurada pelos financistas de Fernando Collor de Mello: Marcílio Marques Moreira, no Ministério da Fazenda, Francisco Gros, na presidência do Banco Central, e Armínio Fraga, na direção da área externa desse banco.
FHC, ministro da Fazenda do governo Itamar Franco e responsável político pela elaboração do Plano Real, se elegeu pelo PSDB em 1994 e governou por dois mandatos (1995-1998 e 1999-2002). Seu governo, no entanto, ficou longe da estabilidade que Anastasia tenta vender. Foi abalado por diversas crises financeiras que ameaçaram o fluxo de dólares essencial para a pretensa estabilização. A inflação em seus oito anos de governo foi relativamente alta: em média, de 9,24%; bem maior do que a da média dos oito anos de governo Lula (5,79%). Deixou o governo em 2002 com a inflação do ano em 12,53%. Para comparação: no final de 2015, primeiro ano do segundo governo Dilma, que Anastasia apresenta como um período de descontrole, a inflação era menor, estava em 10,67%.
Como Anastasia promove o milagre estatístico de usar os dados históricos da inflação num dos indícios do cenário no qual a presidente da República comete "crime de responsabilidade"?). Ele faz uma montagem, que deixa a história da inflação recente mais falsa do que uma nota de três reais. Ele pega o gráfico do Ipeadata para a evolução do IPCA- Índice de Preços ao Consumidor, Amplo - no período 1980-2015, na escala de 0% a 3.000% de inflação anual. E junta a ele, outro, de "elaboração própria", que destaca, para o período de 2006 a 2015, que vai do ano de inflação mais baixa nos governos petistas (3,14%) ao de inflação mais alta (10,67%). (Nota deste blog: O analista, neste parágrafo, orienta a montagem do texto no sentido de inserir um gráfico, mas, por um cochilo, o gráfico não figura na análise).
Anastasia justifica essa armação dizendo o seguinte: "Os números [anteriores] eram tão exorbitantes que, no período pós estabilização monetária, ou seja, de 1995 em diante, tem-se a impressão de que a inflação passaria a ter sido praticamente inexistente à luz da situação hiperinflacionária do passado. Por essa razão, destacamos a inflação mais recente em gráfico sobreposto ao adiante apresentado". Mas, aí, torna-se, além de falso, incongruente. Diz que, no "período pós estabilização monetária", a inflação teria passado a ser "praticamente inexistente". Por que, então, construiu para esse período um gráfico que, evidentemente, visa sugerir um descontrole inflacionário nos governos petistas, entre 2006 e 2015? Ele tinha todos os dados para mostrar que, nesses governos, a inflação foi menor que a dos anos da suposta estabilização monetária peessedebista.
Da inflação, Anastasia passa para os atrasos nos pagamentos do Tesouro a bancos e fundos públicos e aí comete a maior de suas pedaladas estatísticas, digamos assim. Ele sabe que o crime que está sendo julgado é relativo a ações de 2015. Tanto a Câmara, quanto o STF e o Senado tinham aceito a norma constitucional de que o pedido de impeachment impetrado pela trinca de juristas Helio Bicudo, Miguel Reale Junior e Janaína Paschoal contra Dilma Rousseff no final de 2015, tinha, portanto, de se ater a fatos relativos a seu período de governo iniciado a 1 de janeiro daquele ano. Anastasia tinha, dos trabalhos da CEI, todos os dados desses atrasos relativos a compromissos do governo com o Banco do Brasil (BB), Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Caixa Econômica Federal e Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS).
Esses atrasos vinham de bem antes de 2015 e não eram pequenos: pelos balanços com fechamento a 31 de dezembro, feitos pelo Banco Central, os atrasos ficaram em torno de 1 bilhão de reais, entre 2001 e 2002, últimos dois anos de mandato de FHC, e 2007, primeiro ano do segundo mandato de Lula. A partir daí foram crescendo bastante: para 2,3 bilhões em 2008 e 8,4 bilhões em 2010, último ano do segundo mandato de Lula. E, no governo Dilma cresceram mais ainda: foram sucessivamente para 13,0 bilhões, 19,7 bilhões, 36,1 bilhões e, finalmente, 52,2 bilhões em 31 de dezembro de 2014.
Anastasia precisava do crime em 2015. Tinha ouvido mais de uma dezena de depoimentos na CEI que provavam que, nesse ano, o governo Dilma, com Joaquim Levy no comando do ministério da Fazenda, não tinha acumulado novos atrasos; ao contrário, tinha se dedicado a pagá-los. Sabia, finalmente, que, depois de ter pago vários dos atrasos, pagou, nos últimos dias de dezembro, quase todo o resto. Como Anastasia ajeitou esses fatos em suas estatísticas espertas, digamos assim? Veja:
No gráfico, Anastasia colocou os balanços com o valor dos atrasos a 31 de dezembro, para todos os anos, um ponto para cada ano. Mas apenas até 2014. Deixou 2015 de lado. E, para esse ano, colocou 12 pontos, um para cada valor dos atrasos mês a mês. E embora sejam pontos que praticamente se repetem, pois como já dito, o ano foi de pagamento dos atrasos, o gráfico dá a impressão, ao leitor menos avisado, que os atrasos de 2015 são desproporcionadamente grandes. De fato, os atrasos caíram bruscamente em 2015, só sobraram 11,0 bilhões de compromissos, com vencimento no ano seguinte, alias. Veja, no gráfico dos atrasos do qual foi expurgada a contabilidade criativa de 2015 do ilustre Anastasia.
2.
No seu relatório, Anastasia cita apenas duas ou três vezes a questão cambial. A certa altura, sem ter feito qualquer referência anterior ao fato de a estabilidade da moeda brasileira estar ancorada no dólar, passa a falar do "momento em que nossa estratégia de estabilização monetária migrou da âncora cambial para a âncora fiscal". Cita, de passagem, que "a partir de 1999", "o câmbio passa a flutuar". Omite completamente a crise dos anos 1998-1999, que levou, inclusive, à grande campanha popular do Fora FHC e a vários pedidos de impeachment do então presidente. E passa a louvar o programa apresentado em 1998 por Fernando Henrique – como dissemos, depois de acerto clandestino com o FMI e o governo dos EUA – que teria desembocado na nunca assaz louvada Lei de Responsabilidade Fiscal. Por que a omissão da questão cambial é um defeito central do cenário da crise desenhado pelo senador Anastasia e no qual tenta instalar os "crimes" da presidente?
Por várias razões acumuladas: o Brasil é um país dependente do capital financeiro internacional há séculos; essa dependência se agravou com o Regime Militar, que foi encerrado após a gigantesca crise de endividamento externo, nos anos 1981-1983; os governos liberais de Collor e FHC, com a ampla abertura financeira da economia e a tentativa de estabilização dependente da entrada de dólares, apenas tentaram acomodar o País no fundo do poço no qual a ditadura militar o tinha colocado; e, por último, os governos do PT, de 2003 a 2014, tentaram manter essa estabilização precária ao mesmo tempo em que ampliavam os benefícios sociais aos trabalhadores e camadas mais pobres e os incentivos fiscais a empresas brasileiras.
A política econômica dos governos do PT foi bem até a grande crise financeira do centro do sistema capitalista do final da primeira década do século XXI. Os resultados primários, que nos governos Lula tinham sido, em média, maiores que a média dos resultados dos governos FHC, no primeiro governo Dilma começaram a cair. Pelos números do BC, escolhidos por Anastasia para seu gráfico, vão de 2,1% em 2011, para 1,8% em 2012 e 1,4% em 2013. Transformam-se, então, em déficits: de -0,4% em 2014 e, em 2015, num deficit maior ainda, -2,0% do PIB.
Os déficits do governo Dilma se devem à gastança generalizada e ilegal que ela teria promovido em 2014 para ganhar as eleições? Essa é a tese dos pro-impeachment. Mas ela não se sustenta nos fatos. No dia 16 de junho, no seu depoimento na Comissão Especial do Impeachment, o ex-ministro da Fazenda de Dilma, Nelson Barbosa, fez uma comparação: o total de atrasos pagos pelo Tesouro aos bancos e fundos públicos no final de 2015 foi de cerca de 55 bilhões de reais, cerca de 1% do PIB. Já os gastos do Tesouro com os contratos de swap cambial, feitos entre o BC e os grandes investidores do mercado, foram bem maiores, de perto de 90 bilhões de reais, cerca de 1,8% do PIB.
Esses contratos ofereceram juros mais altos em títulos da dívida pública para atrair investidores que estavam pensando em migrar para o dólar, com medo de uma valorização súbita da moeda americana, o que de fato veio a ocorrer no final de 2014. Os swaps cambiais foram contratos de proteção para os investidores estrangeiros que desde o início da política de redução dos juros da segunda metade do primeiro ano de governo Dilma estavam preocupados com a recuperação de seus ativos no Brasil e, entre meados de 2011 e meados de 2012, tinham retirado 200 bilhões de dólares em posições de investimento no País.
Por ora basta dizer que Barbosa comparou os custos para o Tesouro desses swaps com o total dos atrasos do Tesouro pagos no final de 2015. E o atraso que consta do processo de impeachment é apenas o relativo ao Plano Safra, restrito ao Banco do Brasil, de 2015, menos de um quinto daquele total. E os outros "crimes" da presidente, os três decretos de crédito suplementar assinados por ela de modo supostamente ilegal, somam menos de 2,5 bilhões de reais, no total. Ou seja, não é nesses gastos de Dilma, mesmo que, de fato, fossem ilegais, que se acharia a explicação para a grande crise que, de fato, mesmo, assola o Pais.
3.
Para achar a explicação da crise do governo Dilma, deixando de lado a alquimia do senador Anastasia, é preciso voltar à questão da estabilização ancorada no dólar, da dupla Collor-FHC, e retomar a cronologia apresentada há pouco, no ponto das quedas dos resultados primários do primeiro governo Dilma. Como vimos, esses saldos, entre receitas e despesas fiscais, voltados para o pagamento de juros e a redução do risco de um descontrole da dívida, foram cada vez menores.
Para conter o crescimento da dívida, Dilma parece ter apostado tudo na queda dos juros que foi desencadeada logo no seu primeiro ano de governo, o que parece ter lógica: se os superávits são para reduzir a dívida, quanto menos juros melhor. Mas, a economia tem seus mistérios. Como diz Nelson Barbosa, que acabou sendo ministro da Fazenda em 2015, o ano do ajuste da política econômica de Dilma, "não basta baixar os juros e ir para a praia". Ele próprio, aliás, divergiu do rumo seguido pelo governo no primeiro mandato da presidente e, em maio de 2103, se afastou do cargo de secretário executivo do Ministério da Fazenda chefiado por Guido Mantega, onde estava desde o início do governo.
Os juros, como se pode ver facilmente, têm suas vantagens. Para os bancos, por exemplo, que captam dinheiro de um lado, pagando juros, mesmo que altos, e emprestam de outro, cobrando juros ainda maiores. Funcionam assim os bancos privados e os públicos, que ganham montanhas de dinheiro com isso. Os bancos públicos por exemplo – CEF, BNDES e BB - tiveram seus lucros elevados, entre o último ano de FHC e 2015, primeiro ano do segundo mandato de Dilma, da faixa de 1 a 2 bilhões por ano, para a faixa de 7 a 15 bilhões anuais. Dá para comparar, com vantagem, ao custo das chamadas pedaladas do Plano Safra e aos dos créditos suplementares considerados ilegais, as duas gastanças do governo Dilma pelas quais se quer o seu impeachment.
Mas, uma coisa é estimular, com juros baixos, uma economia que está crescendo. Outra é subsidiar juros para empresários que estão numa economia em crise, com desarranjos estruturais essenciais e tenham medo de expandir seus negócios. E a economia brasileira estava, de fato, desarranjada; e um desses desarranjos, entre os maiores, vinha das contas externas do País.
O Brasil tinha começado a sair do desvario que foi a tentativa de se integrar à economia global pagando juros brutais, já no final do segundo mandato de FHC, quando passou a ter superávits expressivos em sua balança comercial em função do extraordinário crescimento das exportações de commodities a preços altos, resultantes, por sua vez, do não menos extraordinário processo de urbanização e crescimento econômico da China. Mas essa conjuntura mudou já no final do primeiro ano de governo Dilma. Os chineses iniciaram uma política de desaceleração da economia, para resolver problemas de descontentamentos internos e em função da grande crise financeira internacional desencadeada em 2008. O preço das commodities caiu vertiginosamente.
No Brasil a mudança teve repercussão imediata. O saldo da balança comercial brasileira se transformou em déficit. E ressurgiu no balanço de pagamentos do País o problema conhecido do déficit de transações correntes que, de certo modo, mede o grau de dependência da economia: se só exporta commodities ou produtos semi industrializados de baixo valor agregado, na sua balança comercial o país dependente não gera dólares suficientes para pagar as contas de serviços e rendas do capital. Em 2014, o déficit de transações correntes do Brasil chegou perto de 100 bilhões de dólares. Apenas com o aluguel de equipamentos como sondas para exploração de petróleo, modernas retroescavadeiras e colheitadeiras, por exemplo, o Brasil gastou 19 bilhões de dólares, quase oito vezes o saldo comercial do ano.
Na peroração com a qual inventa pretextos para justificar o impeachment da presidente, Antônio Anastasia cita elogiosamente o primeiro ministro da Fazenda de Lula, falando em 2003, nos Estados Unidos, na American Chamber of Commerce. Palocci dizia: "Para isso [a estabilização e o crescimento], são necessárias medidas que produzam superávits primários, neste e nos próximos exercícios, suficientes para reduzir a relação dívida/PIB e, portanto, os gastos futuros com o serviço da dívida".
Quando o governo Lula chegou ao poder com grande apoio popular, Palocci procurou agradar aos mercados. Deu um tranco no crescimento da economia: elevou a Selic dos 25,0% que recebeu do governo FHC para 26,5%, no primeiro semestre de 2003. Isso derrubou o PIB, dos 4,31% do início da recuperação econômica para 1,15%. Derrubou a inflação do ano, dos 12,54% herdados da chamada estabilização de FHC, para 9,30% em 2003.
A presidente errou muito. Da aposta concentrada na queda da taxa de juros do início de seu primeiro mandato, ao final dele, na campanha para se reeleger, confiou no marketing político, prometeu o oposto do que já previa fazer – conter o crescimento econômico -, cometendo o que, para muitos, não sem razão, foi um "estelionato eleitoral". Pode ter achado que Joaquim Levy, no ministério da Fazenda, cumpriria o papel de Palocci, no começo do governo Lula. Mas errou, feio. Mas não porque tentou enganar o Congresso e autorizou uma gastança ilegal, como se tenta provar com o cenário falso de seu governo perpetrado pelo frio e educado senador Anastasia com o propósito de enquadrar crimes inexistentes. (Fonte: AQUI).
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