Heróis retroativos
Por Luís Fernando Veríssimo
Glass e Steagall não eram uma dupla de cantores folclóricos como Simon e Garfunkel ou o nome de uma empresa famosa como Black e Decker. Mas, embora ninguém saiba muito a respeito deles, foram nomes importantes na recente vida econômica dos Estados Unidos e, por consequência, do mundo.
Os dois eram congressistas e autores de uma lei que proibia os bancos comerciais de também serem bancos de investimento e limitava a sua ação no mercado financeiro às tarefas bancárias tradicionais.
Foi a revogação da Lei Glass e Steagall que permitiu aos bancos inventarem mil e uma maneiras de lucrar com o jogo sem controle do capital, uma farra que deu no estouro do Lehman Brothers e foi o começo da crise que nos abala até hoje.
Glass e Steagall deram sua breve contribuição à história das boas intenções frustradas e desapareceram, vencidos pelo lóbi da ganância. Não sei se ainda vivem ou ainda são congressistas. Talvez tenham formado uma dupla folclórica.
O caso deles é o da inconformidade de uma minoria, a dos banqueiros, mal explicada e transformada numa reivindicação geral.
Coisa parecida aconteceu no Brasil com a CPMF. A boa ideia do então ministro, dr. Jatene, de taxar transações financeiras para financiar a saúde pública, falhou porque o dinheiro arrecadado na sua curta vigência estava sendo usado pelo governo para tudo menos a saúde pública, mas principalmente porque os mais incomodados com a contribuição forçada, a minoria que movimentava grandes quantias, conseguiram demonizá-la a tal ponto que até quem não tinha movimentação bancária alguma a esconjurava.
A maioria aderiu sem pensar ao lóbi do dinheiro inconformada contra a CPMF, que se bem administrada continua sendo uma boa e justa ideia.
Nos Estados Unidos parte da revolta dos manifestantes contra Wall Street e tudo que ela representa se deve à falta de decisão do Barack Obama em enfrentar as financeiras. A desregulação continua.
Ainda não se viu nas manifestações nenhuma faixa dizendo “Onde estão Glass e Steagall agora que precisamos deles?”, mas os dois têm tudo para se transformar em heróis retroativos. Se a lei deles tivesse vingado, nada disto teria acontecido.
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O Steagall Glass Act foi instituído em 1933, sancionado por Roosevelt, já no clima do New Deal. Steagall e Glass eram senadores. O Act determinava: banco comercial é banco comercial, banco de investimento é banco de investimento. Isso perdurou até o final dos anos noventa, sob o governo Clinton, quando passou a vigorar o Gramm-Leach-Biley Act, que revogou o ato citado e instituiu a geleia geral, com bancos, corretoras e seguradoras livres para tudo, até mesmo para fundirem-se. Pra completar, eis que apareceu o Commodity Futures Act of Modernisation 2000, admitindo os Credit Default Swaps (Derivativos - jogo do jogo do jogo, embasado em recebíveis nebulosos), a subversão do risco negocial e a anulação da regulamentação (e fiscalização) até então coordenada pela CFTC Commodity Futures Trading Comission (espécie de Comissão de Valores Mobiliários). Aí, a esbórnia se generalizou, o desastre se tornou inescapável, estourando em 2008, continua nos dias que correm - e os áulicos do Livre Mercado, forrados de dólares gentilmente cedidos pelos Estados mundiais, continuam a abominar a regulamentação/fiscalização.
(Este comentário foi precedido de breve pesquisa. Eu tinha ciência da questão da 'abertura', nos anos noventa, para fusões de bancos, corretoras e seguradoras, por Clinton - com a colaboração de Greenspan, Summers, Rubin, Geithner... -, bem como que os derivativos haviam surgido por aquela época. Mas desconhecia o Steagall Glass Act, citado pelo Veríssimo).
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