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Produção nacional é quase uma intrusa diante da invasão de 'Avatar' em 2,6 mil salas de cinema no Brasil.
Encerrada a Copa do Mundo com a vitória da Argentina no maravilhoso jogo final contra a França, a atenção geral do país se volta cada vez mais para a posse de Luiz Inácio Lula da Silva e Geraldo Alckmin na Presidência e Vice-Presidência da República, respectivamente. Desde já, soma-se à expectativa pela cerimônia certa preocupação com o que poderá ocorrer nos próximos onze dias, em especial no domingo, 1º de janeiro, e mesmo depois de iniciado o governo.
A complacência, para não dizer cumplicidade, do governo do Distrito Federal frente ao vandalismo cometido na capital por extremistas de direita, em 12 de dezembro à noite, pouco depois de Lula e Alckmin terem sido diplomados, recomenda cautela e medidas de segurança adequadas para proteger o novo presidente e o vice, em especial no dia da posse. Isso sem deixar de fazer o que for necessário para impedir novas manifestações de violência.
Além das razões mencionadas, não faltam outros motivos de inquietação. O descalabro resultante dos últimos quatro anos de desgoverno e os acordos políticos sendo negociados para assegurar a governabilidade a partir de 2023 tornam a tarefa da terceira Presidência Lula mais árdua ainda do que seria em circunstâncias normais.
Não resta dúvida haver pela frente uma imensa tarefa de reconstrução do que foi destruído de forma deliberada pelo governo federal de 2019 até estes dias finais de 2022. Será esperar demais do governo Lula, nessas circunstâncias, que tenha visão estratégica inovadora, incluindo um plano de desburocratização, além do bom propósito de recuperar o que foi desmantelado?
Creio ser decisivo para o êxito da Presidência Lula que demonstre ser capaz de se livrar da obsessão pela volta ao passado, manifestada, tanto por Juca Ferreira, integrante do grupo de trabalho da Cultura do governo de transição, no artigo “O cinema e o futuro do Brasil” (comentado aqui), quanto pelo próprio setor audiovisual brasileiro que se diz esperançoso “no novo tempo político, social e econômico”.
No caso das entidades representativas do cinema – mais de vinte associações, sindicatos etc. –, desvinculadas do futuro governo, decepciona a perspectiva meramente restauradora apresentada no minucioso documento de nove páginas encaminhado ao governo de transição, do qual Margareth Menezes, futura ministra da Cultura, fazia parte. O parágrafo final do texto é explícito ao considerar “a necessidade de adoção de medidas efetivas para reconstrução e fortalecimento do audiovisual brasileiro”, induzindo à sensação de que, de 2003 a 2018, a atividade cinematográfica foi exercida, entre nós, no melhor dos mundos – o que pura e simplesmente não corresponde aos fatos, como é notório.
Sem ter como objetivo estratégico criar condições financeiras e de mercado para tornar autossustentável a produção de filmes brasileiros, toda política de financiamento para o setor, por mais vultosos que sejam os recursos investidos, estará fadada ao fracasso. Sem redefinir os termos da competição no mercado interno entre os filmes brasileiros e os importados, nunca nos tornaremos autônomos, nem nos livraremos do questionamento periódico quanto à legitimidade de o principal financiamento do setor ser feito com recursos públicos, ainda que gerados pela própria atividade.
Exemplar a esse respeito é o recente lançamento no Brasil de Avatar – O Caminho da Água (2022), de James Cameron, em 747 cinemas e 2,6 mil salas, enquanto o filme brasileiro A morte habita à noite (2020), de Eduardo Morotó, teve estreia semiclandestina em 17 cinemas, segundo o portal Filme B. Outros três títulos importados, dois também distribuídos pela Disney e um pela Universal, completam o domínio do mercado, no qual a produção nacional continua sendo intrusa.
Caso a dependência do Estado seja o destino fatal do cinema brasileiro, seria preciso assumir de vez essa fatalidade e recusar o faz de conta que ilude desavisados quanto à capacidade de a maioria dos filmes produzidos reaver o investimento feito na produção e no lançamento, além de gerar dividendos que propiciem às empresas produtoras um processo de acumulação.
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Na famosa canção What a Wonderful World, de Bob Thiele e George David Weiss, lançada em 1967 na voz de Louis Armstrong, os versos na primeira pessoa descrevem o que “eu vejo” e concluem cada estrofe com o famoso e controvertido refrão: “… E eu penso comigo mesmo/Que mundo maravilhoso.”
Nos conturbados anos 1960, a visão idealizada de What a Wonderful World deu o que falar e levou Armstrong a gravar, em 1970, uma justificativa que fala por si:
Alguns de vocês, jovens, têm me dito: “Ei Pops, o que você quer dizer com ‘Que mundo maravilhoso?’ E todas essas guerras em toda parte? Você as considera maravilhosas? E a fome e a poluição? Elas tampouco são maravilhosas.” Bem, que tal ouvir o velho Pops por um minuto? Para mim não parece ser o mundo que é tão ruim assim, mas o que nós estamos fazendo dele. E só o que estou dizendo é: veja que maravilhoso o mundo seria se ao menos lhe déssemos uma chance. Amor, baby, amor. Esse é o segredo, yeaaah. Se nós nos amássemos mais uns aos outros resolveríamos muito mais problemas. E então este mundo seria um enorme sucesso. É só isso que o velho Pops continua dizendo. (gravação original disponível em https://www.youtube.com/watch?v=2nGKqH26xlg).
Em meio à desgraceira generalizada no mundo e no Brasil, da miséria à guerra, seria bom poder endossar as palavras de Armstrong. Não chego a tanto, mas admito que ele me encanta – seu sorriso, sua voz e sua música fazem um bem danado.
O documentário Louis Armstrong’s Black & Blues (2022), dirigido por Sacha Jenkins, tão eficiente quanto despretensioso, não inclui a explicação sobre What a Wonderful World citada acima. Reaviva, porém, a cativante presença em cena de Armstrong como músico, intérprete e ator. Apresenta, sem pretender inovar, parte considerável de seu repertório em filmagens e gravações de alta qualidade e recupera sua trajetória biográfica. Disponível na plataforma de streaming Apple desde o final de outubro, assistir ao documentário é um prazer garantido neste inquietante final de ano.
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Destaque (XXII): “Acho que agora está na hora de suavizar a atmosfera com um pouco de entretenimento. Não baseado no princípio do escapismo, mas no princípio da afirmação. Dificilmente haverá um artista mais afirmativo no mundo musical do que meu velho amigo que vou chamar agora, baseado na teoria de que a música tem encantos para suavizar o coração selvagem. E porque ele é, fora de qualquer dúvida, uma das maiores influências da música americana e a maior influência do jazz de todos os tempos, é meu grande prazer lhes trazer meu grande amigo Louis Armstrong.” Orson Welles, anfitrião convidado, substituindo David Frost, na abertura de Louis Armstrong’s Black and Blues.
Nota: Esta é a última coluna de 2022. Após recesso de duas semanas, voltará a ser publicada em 4 de janeiro. - (Fonte: Revista Piauí - Aqui).
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