quarta-feira, 1 de abril de 2020

'VÍRUS CHINÊS' E O RACISMO CONTRA ASIÁTICOS NO BRASIL

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Relato - ao site Opera Mundi - da brasileira Lian Tai, filha de pais chineses vindos para o Brasil na infância. 
Duas observações marcantes de Lian, entre outras:
."O mais curioso do racismo contra asiáticos no Brasil é que as pessoas absolutamente não desconfiam que ele existe, já que, mesmo com a herança da escravidão, até a consciência do racismo contra negros ainda está engatinhando."
."Chama-se o novo vírus de 'vírus chinês'. O H1N1 surgiu na América do Norte, mas não foi conhecido como vírus americano, e isso diz muito sobre as entrelinhas do discurso. A mensagem é que o que vem desse país estranho com pessoas estranhas nos ameaça. E a necessidade de afirmar o vírus como ameaça chinesa é reforçada por a China não ser um país capitalista, o que causa mais estranhamento e, claro, fere a soberania do Capital." 


Por Lian Tai

Sou filha de mãe e pai chineses, que vieram ao Brasil ainda crianças, na década de 60. Nasci na Goiânia dos anos 80, onde cresci e vivi até me mudar, quatorze anos atrás, para o Rio de Janeiro. Ser sino-brasileira tem sido tão estranho no Rio quanto o foi em Goiás, a vida toda. Até hoje, na rua, enfrento dedos que me apontam com deboche e caricaturas, como era na infância. Arigatô! Xinglingling! - são os cumprimentos de gente que nem me conhece e se vê no direito de rir de mim quando passo.
Na escola, sempre entrei na lista das mais feias da turma. As mais bonitas eram brancas, de preferência loiras, na Goiânia parda e cabocla. As bonitas eram tão brancas quanto a branquitude que aparecia na televisão, que não dava conta de representar um país miscigenado, colorido. Eu era feia como eram feias as poucas negras que estudaram comigo, que também não faziam parte do padrão de beleza do colonizador. Aprendi cedo a desejar ser outra e a não gostar dos meus traços. Não me reconhecia como chinesa, enquanto os outros não me reconheciam como brasileira. 
Eu tinha certa facilidade para aprender, mas lembro que, já na infância, me tornei rebelde e passei a tirar notas baixas, para fugir ao estereótipo da oriental CDF. Sentia vergonha quando meus pais falavam mandarim na frente dos outros. Não queria pertencer àquele grupo, tido como feio, estranho.
Em algum momento, saí da categoria "feia" para a categoria "exótica". Objeto de curiosidade, de interesse, de desejo. Mas objeto, não sujeito. Comecei a trabalhar como atriz e, entre um mestrado e um doutorado em Comunicação Social, formei-me em teatro. Raramente sou convidada para representar alguma personagem que não seja ou ridícula e estereotipada ou alguma mulher entre outras para dar a ideia de variedade. Frequentemente escuto "elogios" como: "Você é uma oriental bonita". Nunca vi uma branca ser elogiada como uma branca bonita. 
Alguns anos atrás, um namorado me levou a um show de stand up comedy. Fui levemente contrariada, pois quem costuma ser alvo de piadas dificilmente tem o mesmo senso de humor. Lembro que um dos humoristas disse o seguinte: "Os homens acham que é legal ser ator pornô, mas imagina se tiver que pegar uma oriental daquelas!" Queria ter gritado que ele era racista, mas me senti humilhada demais diante do então namorado e tentei não me fazer visível, enquanto me segurava para não chorar. 
Hoje tenho uma filha pequena, que para mim é o ser humano mais bonito do mundo, mas sempre vejo com olhar crítico quando a elogiam por ser mestiça. A velha ideia de que é preciso "suavizar" nossos traços, que são considerados fortes por não serem europeus. Quando alguém passa por nós e faz alguma chacota, só penso que não quero que ela passe pelo que eu passei. Não é possível que o mundo não mude. 
O mais curioso do racismo contra asiáticos no Brasil é que as pessoas absolutamente não desconfiam que ele existe, já que, mesmo com a herança da escravidão, até a consciência do racismo contra negros ainda está engatinhando. Por isso presencio ou sou vítima de racismo até de pessoas próximas, queridas. Há a amiga que imita o sotaque chinês de forma caricata, dizendo "pastel de flango". Há o amigo que me contou que, em sua viagem à China, esperava encontrar "um monte de Lianzinhas" mas achou o povo feio, esquisito. Há o desconhecido que chamou o povo chinês de nojento. Há a amiga que se espantou por meus pais serem professores universitários, mestres e doutores, pois imaginava que tivéssemos um restaurante. Há a conhecida que, querendo criticar o presidente chinês, chamou-o de Xingling. "Isso não é racista?" - perguntei. Ela justificou que discordava da política do país (que, convenhamos, os brasileiros não conhecem, mas isso é tópico para outro texto). Discordância te dá aval para ser racista? - é o que não perguntei, por cansaço. 
Nos últimos meses, com a pandemia do coronavírus, tenho visto o racismo contra asiáticos mostrar-se com mais veemência. Um racismo que começa contra os chineses e se estende a todos os povos do extremo oriente, até porque, no Brasil, "é tudo a mesma coisa". Chama-se o novo vírus de "vírus chinês". O H1N1 surgiu na América do Norte, mas não foi conhecido como vírus americano, e isso diz muito sobre as entrelinhas do discurso. A mensagem é que o que vem desse país estranho com pessoas estranhas nos ameaça. E a necessidade de afirmar o vírus como ameaça chinesa é reforçada por a China não ser um país capitalista, o que causa mais estranhamento e, claro, fere a soberania do Capital. 
Recentemente, um amigo fez uma postagem em rede social sobre uma doação para hospitais realizada por um grupo de chineses. "Será que não está contaminado?" - foi o comentário de um homem que se diz mestre de kung fu e tem academias espalhadas por São Paulo. Fiquei tão chocada por ele se dizer representante de uma cultura que desrespeita, que fui dar uma olhada em sua página e constatei o óbvio: é apoiador do presidente e sua família. O presidente, cujo filho é deputado, insinuou que a China seria responsável pela pandemia. 
O racismo sendo reforçado pelos nossos representantes é algo a que devemos dar atenção. E, se prestarmos a atenção devida, veremos que ele esteve sempre lá, na maioria das vezes invisibilizado e destituído de seu nome: Racismo. 
É preciso nomear as coisas para desencantá-las.  -  (Aqui).

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