(Colagem: GGN).
Os livros da 'Anti-Biblioteca' de Umberto Eco
Por Gilberto Cruvinel
Umberto Eco completaria ontem, 05 de janeiro, 87 anos. Se vivo estivesse, veria reencarnar no Brasil de hoje a personagem Jorge de Burgos, o guardião cego da biblioteca do mosteiro beneditino do norte da Itália medieval no seu romance “O Nome da Rosa”. Quem leu o livro ou assistiu ao filme, lembra-se que Jorge de Burgos tem uma teoria própria sobre porque o riso é perigoso: “O riso é um evento demoníaco que deforma as linhas do rosto... e faz os homens parecerem macacos” e ainda, respondendo a William de Baskerville, (o monge franciscano encarregado de investigar uma série de mortes que ocorreram no mosteiro, encarnado pelo ator Sean Connery) que lhe questiona o que há de errado no riso e porque ele queria destruir o livro da poética de Aristóteles.
Jorge de Burgos: O riso mata o temor e sem temor não pode haver fé. Se não há temor ao demônio não é necessário haver Deus.
William de Baskerville: Mas não eliminará o riso destruindo este livro.
Jorge de Burgos: Não por certo, o riso continuará sendo a recreação comum do homem. Mas o que acontecerá se por causa deste livro os homens eruditos declararem ser permissível rir? Podemos rir de Deus. O mundo retornaria ao caos. Portanto, eu encerro o que não deve ser dito no túmulo que me torno. (mastiga as páginas envenenadas do segundo livro de poesia de Aristóteles e lança fogo na biblioteca).
Feodor Chaliapin, Jr., o monge bibliotecário cego Jorge de Burgos, de “O Nome da Rosa”.
Quando vemos no Brasil de hoje que a ministra encarregada dos Direitos Humanos nega esses direitos a segmentos inteiros da sociedade, tratando-os como aberrações e doentes, quase como se os quisesse queimar e em que o recém-empossado presidente do Inep, órgão encarregado dos vestibulares no país, Murilo Resende Ferreira prega a queima de livros, verificamos que o país saiu de 2018 e não entrou em 2019, mas em 1327, ano em que se passa a história de “O Nome da Rosa”, e concluímos que o censor incendiário Jorge de Burgos reencarnou.
Se a biblioteca beneditina de “O Nome da Rosa” queimou, outra, mais moderna, mas recheada de livros igualmente raros e tão antigos quanto, foi preservada e fazia a alegria e a própria vida do escritor e filósofo italiano.
A “anti-biblioteca” de Eco possuía 30 mil títulos no ano de sua morte, 2016 e, para acomodar tudo isso, ele transformou o espaço, que originalmente era um hotel, em flats. Após sua morte, a família do escritor está negociando com duas instituições italianas a doação ou a venda da biblioteca: a Universidade de Bolonha, onde ele foi professor emérito e presidente da Escola Superior de Estudos Humanísticos, e a Biblioteca Braidense de Milão (cidade onde o bibliófilo viveu e onde ele e seus familiares investiram valores relevantes na Editora La nave di Teseo).
Mas por que “anti-biblioteca”?
O escritor libanês Nassim Nicholas Taleb, em seu livro The Black Swan, diz que Eco é exemplo de alguém que entende perfeitamente a ideia de como uma biblioteca pessoal deve ser:
« Umberto Eco pertence a um pequeno grupo de acadêmicos que são enciclopédicos, inteligentes e interessantes. Ele é dono de uma biblioteca pessoal enorme (contendo 30 mil livros) e separa os visitantes em duas categorias: aqueles que reagem dizendo, ‘uau! Signore professore dottore Eco, que biblioteca você tem! Quantos desses livros você já leu?’ e aqueles – uma pequena minoria – que entendem que uma biblioteca particular não serve para inflar o ego, mas é uma ferramenta de pesquisa. Os livros já lidos são muito menos valiosos que os não lidos. A biblioteca deveria conter o máximo do que você não conhece conforme seus recursos financeiros, taxas de hipoteca e o atualmente inflexível mercado imobiliário permitem. Você vai acumular mais conhecimento e mais livros conforme envelhece e o crescente número de livros não lidos nas prateleiras olharão para você ameaçadoramente. Na verdade, quanto mais você sabe, maiores são as fileiras de livros não lidos. Vamos chamar essa coleção de livros não lidos de ‘anti-biblioteca’. »
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Eco escreveu um pequeno livro, “A Biblioteca”, do qual vale a pena reproduzir a Introdução escrita por ele.
« Um dos mal-entendidos que dominam a noção de biblioteca é o facto de se pensar que se vai à biblioteca pedir um livro cujo título se conhece. Na verdade acontece muitas vezes ir-se à biblioteca porque se quer um livro cujo título se conhece, mas a principal função da biblioteca, pelo menos a função da biblioteca da minha casa ou da de qualquer amigo que possamos ir visitar, é de descobrir livros de cuja existência não se suspeitava e que, todavia, se revelam extremamente importantes para nós.
A função ideal de uma biblioteca é de ser um pouco como a loja de um alfarrabista, algo onde se podem fazer verdadeiros achados, e esta função só pode ser permitida por meio do livre acesso aos corredores das estantes.
Se a biblioteca é, como pretende Borges, um modelo do Universo, tentemos transformá-la num universo à medida do homem e, volto a recordar, à medida do homem quer também dizer alegre, com a possibilidade de se tomar um café, com a possibilidade de dois estudantes numa tarde se sentarem num maple e, não digo de se entregarem a um amplexo indecente, mas de consumarem parte do seu flirt na biblioteca, enquanto retiram ou voltam a pôr nas estantes alguns livros de interesse científico, isto é, uma biblioteca onde apeteça ir, e que se vá transformando gradualmente numa grande máquina de tempos livres » - (Fonte: Aqui).
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