São Francisco de Assis ergue a Igreja. (Quadro de Giotto).
A propósito de Francisco
Por Mino Carta
Quando me ajoelhei aos pés do altar para receber a Primeira Comunhão, meus olhos ficaram embaçados e desmaiei. No dia anterior, de retiro espiritual orientado pelas minhas inesquecíveis freiras marcelinas, ao enfrentar momentos de inequívoca materialidade, almoçara risotto com espinafre demoniacamente amanteigado. Não me surpreenderia se o próprio Lúcifer tivesse estacionado na cozinha. Passei uma noite no inferno, entre 16 e 17 de maio de 1942, dia da comunhão.
Atordoado, à beira da inconsciência, degluti a hóstia que me foi imposta goela abaixo por santas razões, pois a oportunidade não poderia ser desperdiçada a bem das expectativas dos familiares presentes, e logo me reencontrei na sacristia diante de um café da manhã monumental. Boa lembrança, além de definitiva.
Pela magnitude do evento, ganhei presentes diversos, como era do costume da época e do país, entre eles uma refinada edição de 1927 de “I Fioretti di San Francesco”, obra medieval nascida de contribuições anônimas redigidas em perfeito italiano para contar passagens salientes da vida de São Francisco de Assis. O qual fora batizado João e não nascera para ser santo, e sim rico senhor, talvez um tanto devasso.
A prima de minha mãe, que me presenteou com o livro, escreveu na dedicatória: “Este é o dia mais belo da sua vida”. Confesso que não me dei conta disso, a despeito da magnificência do desjejum. Quase 71 anos depois, tiro da estante “I Fioretti” ao saber que o novo papa será o primeiro Francisco da história dos sucessores de Pedro, o pescador.
Arrisco-me a entender que o nome não foi escolhido ao acaso, e logo me vem à memória um afresco da Basílica de São Francisco, em Assis, um da série deslumbrante pintada por Giotto para narrar a vida do santo ao longo das paredes da igreja superior, um dos recantos mais poéticos, e poéticos até a transcendência, em que um indivíduo possa mergulhar mundo afora. O afresco intitula-se “O Sonho do Papa”, e colhe o santo a reerguer literalmente a Igreja.
Francisco, em quem Dante divisou um semeador de luz com a pronta anuência do amigo Giotto, foi reformador herói, sem contar o poeta que escreveu “O Cântico das Criaturas”, ou “Cântico ao Irmão Sol”, obra-prima da língua italiana, e, portanto, o santo mais próximo de Cristo, cujo exemplo transformou na Regra da sua vida e da sua pregação em defesa da natureza e dos desvalidos.
A lição de Francisco é, na essência, um desafio à Igreja e ao papa Inocêncio III, estadista cercado pelo luxo, grudado à crosta terrestre e às suas ambições e vaidades, e em cuja época o poder temporal do Vaticano atingiu o apogeu, quando o sucessor de Pedro interferia na política do Sacro Romano Império. Francisco surge como prova dos descaminhos papais, é o manso contestador que põe o dedo na chaga em nome da ideia indiscutivelmente cristã da revelação e do amor.
Leio hoje no prefácio dos “Fioretti”, de autoria de um autor francês: “Vislumbrem a sociedade que nos cerca: qual é o vício radical da nossa época? (…) Somente os insensatos podem lamentar os progressos da ciência, somente os mais puros materialistas podem atribuir seu desconforto à Revolução Francesa ou à Declaração dos Diretos do Homem, quando, de verdade, ela estabelece apenas o cumprimento do Decálogo (…)”
E mais adiante: “É no coração que estamos doentes, neste centro misterioso onde se originam as fontes da vida. Discórdias internacionais e agitações internas; guerras estrangeiras e guerras civis; crises individuais pelas quais muitos entre nós vivem sem viver, são atores que interpretam seu papel em lugar de homens que conquistam sua individualidade. E isso tudo decorre de uma única causa. Povos e indivíduos esqueceram as realidades interiores, as realidades viventes, e deixaram-se seduzir pelo erro fatal de que o dinheiro é o instrumento da felicidade”.
Não há como imaginar que a igreja de Roma possa mudar, até mesmo pela rota de um reformismo lento e gradual. Da mesma forma, a leitura acima mostra que o mundo também continua o mesmo. Quanto a Jorge Mario Bergoglio, o nome que acaba de escolher para reinar parece indicar grandes propósitos, embora não se exclua que o novo papa tenha pensado, de fato, em Francisco Xavier, santo da sua Ordem, a jesuíta. Aquela nascida da espada de Inácio de Loyola no palco faustoso do barroco, iluminado pelas fogueiras dos autos de fé.
Outra a Ordem de Francisco de Assis, a figura maior da cristandade depois do próprio Cristo, a dos “Frades Menores”. Personagens de luminosidade cegante, que a bola de argila a nos hospedar, enquanto gira em torno do Irmão Sol, até hoje não foi capaz de merecer.
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Como já observado em post anterior, o papa pensou em São Francisco de Assis, após as palavras que d. Cláudio Hummes, arcebispo emérito de São Paulo, lhe dirigiu ("Lembre-se dos pobres. Lembre-se dos pobres.").
Por falar em d. Cláudio, convém conhecer seu pensamento acerca de temas de singular importância sobre a Igreja. Sustenta, por exemplo, que a Igreja "não funciona" do jeito que está e pede mudanças em toda sua estrutura. A entrevista completa (à Folha) pode ser lida AQUI.
domingo, 17 de março de 2013
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