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DESENHAR A VIDA
Na cena inicial do documentário Lan, o Caricaturista, é o próprio Lan quem faz uma analogia entre o seu ofício e a existência: “Eu acredito que você desenha sua própria vida, e o papel em branco é você que vai preencher.” É a página de sua vida que ele conta para a câmera do diretor Pedro Vinicius e como a preencheu com sua arte.
Em longo depoimento, captado a partir da sua casa de um sítio em Petrópolis, na qual vivia com sua esposa Olívia Marinho, Lan rememora o passado. Ele faleceu em 2020. O vigor da memória e o bom humor se impõem sobre a idade já avançada.
De origem italiana, Lan conta que chegou ao Brasil ainda criança, nos anos 1920. O pai, músico, aceitara um convite para tocar na recém-criada Orquestra Sinfônica de São Paulo. Depois disso, a família mora em Buenos Aires, onde ele trabalha na editora pertencente a Eva Perón, e Montevidéu.
Foi a mudança para o Rio de Janeiro, no entanto, que significou um passo decisivo na vida do caricaturista. Ele havia sido convidado por Samuel Wainer para trabalhar no jornal Última Hora. Foi amor à primeira vista pela cidade. “No Rio de Janeiro, eu poderia ser motorista de táxi, porque conheço essa cidade de ponta a ponta”, ele admite num de seus muitos momentos de bom humor. “Me dá uma felicidade enorme quando me chamam de carioca.”
A vida carioca imprimiria um ritmo diferente a sua arte, com sua cultura marcada pela música, as escolas de samba e as mulheres, sobretudo as mulatas, modelos constantes de suas caricaturas. Os desenhos de Lan, estampados nas páginas de jornais, retratam um longo período da vida do nosso país, e podemos dizer que já os conhecíamos desde sempre, sem que soubéssemos de seu autor.
São muitas as facetas de Lan mostradas no documentário. O artista que punha no desenho o sentido de sua vida, o homem político que abominava qualquer forma de populismo – segundo ele, “o passo mais curto para a ditadura” – e que não se situava nem à direita, nem à esquerda. Como opção imaginava fundar um partido anarquista de centro.
O amante da música – gostava de desenhar ouvindo jazz e samba – e das mulheres, seu tema favorito, cuja sensualidade se destaca em curvas sinuosas exibindo derrières avantajadas, estilo de desenho assim justificado por seu criador, entre rasgos de galhofa: “Não sou bundófilo, eu gosto de desenhar bundas porque é um negócio voluptuoso e que dá balanço.”
Admirador de Che Guevara, que chegou a conhecer em Buenos Aires antes da histórica viagem do líder revolucionário cubano pela América Latina, Lan conta que pensou em ir para Cuba, onde se engajaria na revolução. Chegou a colaborar com o jornal de Fidel Castro, o que lhe valeu o risco de prisão durante a ditadura militar de 1964, forçando-o ao autoexílio na França. Mas então ele acabou conhecendo a esposa Olívia Marinho e o amor falou mais alto do que qualquer ímpeto revolucionário.
Da metade para o final, o documentário ganha a participação de Olívia (ela também faleceu no mesmo ano da morte do marido), que se soma ao relato das muitas passagens da vida de Lan, cujo nome no início da carreira em Montevidéu era Franco (do seu nome Lanfranco Aldo Ricardo Vaselli Cortellini Rossi Rossini). Foi encorajado a trocar de nome por seu editor, já que havia no Uruguai muitos refugiados do regime do caudilho espanhol Francisco Franco. O nome Lan lhe foi sugerido por uma namorada uruguaia. Pegou. E foi como Lan que ele entrou para o time dos grandes caricaturistas do nosso tempo. Por afeto e adoção, e para nossa sorte, um cidadão carioca. - (Blog Carmattos - Aqui).



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