sábado, 22 de outubro de 2016

A MORTE DO ÚLTIMO CINEMA DE BAIRRO DE SANTOS


O fim do Cine Brasília em Santos e o projeto oculto da grande mídia

Por Wilson Ferreira

Todas as vezes que esse humilde blogueiro desce a serra para passar uns dias na cidade natal de Santos, litoral de SP, uma melancolia nostálgica toma o autor dessas mal traçadas linhas. Nem tanto pelas óbvias memórias da infância e juventude universitária a cada esquina, praças ou botecos que vejo. Mas, principalmente, por deparar-me com lugares que no passado foram símbolos de um futuro para o qual, mais uma vez, o País vira as costas.

Assim como nesse momento quando o País renuncia ao futuro com pacotes de maldades como, por exemplo, PEC 241 e Operação Lava Jato - em nome do combate da corrupção, joga-se fora a água suja com o bebê junto.

Um desses lugares está na Avenida Pedro Lessa, no bairro de Aparecida, onde outrora foi o Cine Brasília, hoje transformado em supermercado de uma conhecida rede. Um cinema que heroicamente resistiu à extinção dos cinemas de bairro, encerrando suas atividades somente no finalzinho dos anos 1970. Foi o último da sua espécie em Santos, numa época em que todas as salas de exibição já estavam concentradas no centro turístico do Gonzaga, no entorno da avenida Ana Costa e Praia.

O Cine Brasília foi aquele que mais persistiu por ser uma sala de bairro que já contava, na época, com ar condicionado, snack bar, bomboniere e outras comodidades para o público. E um sistema de projeção surpreendente para um cinema de bairro: um moderno projetor italiano para filmes 35 e 70mm.

Cine Brasília em 1977, Santos, SP

Cine Brasília e “Laranja Mecânica”


Além disso, o cinema contava com uma arquitetura inspirada nas retas e curvas da Brasília de Oscar Niemeyer. Na fachada, um imenso mural com as famosas esculturas e formas plásticas como as colunas em curvas e retas do Palácio do Planalto, tudo estilizado por linhas geométricas sobrepostas em contrastes suaves. No saguão e sala de exibição, figuras dos regionalismos brasileiros como o jangadeiro, baianas etc., em estilo geométrico abstrato onde estavam colocadas luminárias spots que projetavam efeitos suaves de luz para o alto.

Um cinema que ousava na programação, inclusive exibindo o polêmico filme Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick (quando censores da ditadura militar encheram o filme de bolinhas pretas), já nos estertores da sua existência.

Sem idade suficiente para assisti-lo, esse humilde blogueiro tentou até entrar no Cine Brasília com uma carteirinha de identificação falsa. Mas o rosto imberbe e a cara de moleque me denunciaram, e fui prontamente retirado do snack bar onde preparava-me para assistir ao filme. 

Brasília e Niemeyer: a utopia da Civilização Brasileira

Cine Brasília e a Civilização Brasileira


Mais do que um sala de exibição de bairro, o Cine Brasília inspirava a utopia da civilização brasileira vislumbrada por Oscar Niemeyer – uma civilização industrial repentinamente enxertada no sertão selvagem, ao mesmo tempo que produzia uma linguagem (cinema, artes, arquitetura, música) capaz de expressar universalmente os regionalismos nacionais.

Um projeto utópico de intelectuais do calibre de Niemeyer, Lucio Costa ou Darcy Ribeiro, tudo abortado pelo golpe militar de 1964 que inseriu no País dois elementos corrosivos cujo fim do Cine Brasília foi um evento particular desse contexto mais geral: a propagação do american way of life através da primeira rede de TV do País, a Globo; e a recessão econômica e hiperinflação.

Claro que a televisão foi o primeiro fator apontado para o fim dos cinemas de bairro. Mas, o que realmente exterminou essas salas de exibições foi a recessão econômica pós-milagre econômico da ditadura militar; crise e perda do poder aquisitivo fizeram as pessoas ficarem presas diante da TV, com latas de cerveja enquanto assistiam a um jogo de futebol ao vivo.

Décadas se passaram e essa ainda continua sendo a estratégia de sobrevivência da grande mídia televisiva ao apoiar as atuais medidas ortodoxas neoliberais como Estado Mínimo e PEC 241: recessão e tempos difíceis tornam as pessoas amedrontadas e a TV converte-se na única forma de lazer.


Salvação para o bolso e a alma


Com a recessão econômica e portas fechadas, o Cine Brasília transformou-se em supermercado, passando de uma rede para outra. Outros cinemas de bairro da cidade como o São José, Gonzaga, Ouro Verde e Marapé viraram igrejas evangélicas, bingo, estacionamento e mais supermercados.

Extinções de cinemas em série que lembram a ironia do filme A Última Sessão de Cinema (1971) de Peter Bogdanovich: é irônico que os mesmos locais que embalaram sonhos de uma geração se transformem em pesadelo dessas mesmas pessoas quando atingem a velhice – sem renda para o lazer, entretenimento e cultura, resta a compra dos víveres básicos para se manterem vivas.

Comprovando a lição final desse filme clássico: quando não há mais ficção no entretenimento, o indivíduo passa a perceber a sua finitude e, consequentemente, passa a viver mais triste e desesperançado.

Por isso, cinemas de bairro também transformaram-se em bingos e igrejas evangélicas: explorar essa desesperança, oferecendo alguma possibilidade de salvação, seja no bolso ou na alma.

Na sucessão de crises econômicas (e políticas) cíclicas que o País atravessa desde 1964, os cinemas populares e de bairro perderam sua demanda – pessoas amedrontadas em relação ao futuro com a progressiva perda do poder aquisitivo do salário ou aposentadoria isolam-se e fecham-se nas suas residências. A televisão de massas prospera nesse baixo astral psíquico.

No caso de Santos, bairros populares como Macuco, Encruzilhada, Aparecida, Estuário e Vila Matias perderam suas salas de exibição. Hoje, os cinemas de rua concentram-se no Gonzaga e Praia ou nos cinemas de shoppings nas salas multiplex.  Cinema para turistas ou classes médias.

O destino final do Cine Brasília

O Projeto da Grande Mídia: quanto pior melhor


O caso do fim do Cine Brasília, convertido em supermercado, é um exemplo particular da colonização ideológica generalizada iniciado com o projeto da ditadura militar que não acabou – é continuado, cujas consequências ainda se desdobram, como vemos no atual momento brasileiro.

Embora formalmente vivamos em uma democracia formal (com urnas eletrônicas e votos) a propriedade dos meios de comunicação continua com a mesma configuração, monopolista e não democrática. Para essa grande mídia, não interessa apenas intervir diretamente na política brasileira, como mostrou nos anos recentes o esforço hercúleo em rebocar a oposição até o impeachment da presidenta Dilma.

A grande mídia pensa principalmente na sua sobrevivência sob a concorrência das tecnologias de convergência - Internet e dispositivos móveis. Compulsivamente procura manter o esquema de captação publicitária de inserção na grade de programação massificada – e no caso da Globo, através do BV, Bônus por Volume: a Globo adianta para as agências de publicidade as verbas que elas planejam gastar em um ano.

 Não é à toa que o jornalismo econômico da Globo seja notabilizado pelos “urubólogos”: quanto pior para o País, melhor para a Globo e o restante da grande mídia. Por isso que, histericamente, os “urubólogos” de plantão defendem o sacrifício, o corte na carne, a chibata no lombo de trabalhadores e aposentados como medidas necessárias para um suposto crescimento econômico, sempre futuro e distante.

Com isso terá uma audiência deprimida, amedrontada e ressentida e, portanto, fiel e isolada dentro de suas casas diante da TV. Sem renda para usufruir do verdadeiro lazer, entretenimento e cultura oferecido por cinemas e teatros.

Mesmo o pior filme assistido em um cinema de rua é superior ao melhor filme exibido na TV. Enquanto, isolados, assistimos a uma obra-prima na telinha da TV, ir ao cinema,  mesmo para assistir ao pior filme, significa quebrar uma rotina – colocar a melhor roupa, andar pelas ruas e interagir com um cenário urbano.

Liberdade de ir e vir, convivência urbana e comunitária. Exatamente contra tudo isso a grande mídia conspira. Enquanto persistir o monopólio midiático nesse País, continuaremos a ter medo do futuro na grande distopia, todo dia transmitida ao vivo, através das telinhas como fosse um neuroléptico para mentes desesperançadas.

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Fontes: AQUI e AQUI.

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Duas observações: 

a) até o governo Dilma, na mídia escrita e televisionada reinavam os "urubólogos"; a partir de Temer e seus parceiros, todos foram convertidos em "otimistólogos";

b) o texto de Ferreira nos traz à mente saudosos cinemas que povoaram nossa trajetória, a exemplo do Cine Roxy, em Piracuruca, Cine São Domingos, em Luzilândia, Cine Éden, em Parnaíba, Cines São Raimundo, Royal (cinema de arte) e Rex, em Teresina...



Já não se louva o cinema como antigamente...

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