segunda-feira, 30 de maio de 2016

DISSECANDO O FASCISMO E O PROCESSO DE FASCISTIZAÇÃO DO PAÍS


O que fazer com o fascismo

Por Mauro Santayana

Querendo ou não, o voto do Sr. Jair Bolsonaro no plenário da Câmara, homenageando, aos gritos, o golpismo, a tortura, e fazendo alusão ao sofrimento físico e ao terror sofridos por Dilma Rousseff quando de sua prisão – ilegal, por ilegal ser o regime – à época do regime militar, foi o ápice emblemático, o marco, o símbolo, a evidência de uma situação histórica cristalina e incontornável.

Descarado, despudorado, estúpido, violento, irracional, com centenas de milhares de votos e milhões de simpatizantes, muitos deles organizados em uma miríade de grupos que vai de saudosistas e apologistas da tortura e dos assassinatos de opositores políticos a fundamentalistas religiosos corruptos, nascidos da exploração da fé, do voto e do bolso da parte mais pobre e menos informada da população – sem oposição, sem controle por parte do Judiciário, que a ele se alia por numerosos braços, e da polícia, que lhe fornece candidatos e simpatizantes – o fascismo veio para ficar e ocupa já um espaço próprio na sociedade brasileira, desafiando abertamente a Democracia e o que ela tem de mais importante, essencial, libertário, humanístico, civilizatório.


A questão inadiável, que se coloca, para agora e o anos de eventual pós-petismo, é a seguinte: o que fazer com o fascismo?


Denunciá-lo e isolá-lo, como a absurda excrescência que é em nosso modo de vida e no nosso espectro político? Tentar articular uma frente possível, para enfrentá-lo?

Ou permitir que se instale, como legado do nosso passado colonialista e escravagista, “normalmente”, na vida do país, e que abra caminho para o poder, ajudando a isolar e a desconstruir, institucionalmente, as forças socialistas e nacionalistas, sabotando-as, e destruindo-as, e eliminando-as, praticamente, institucionalmente, da vida nacional?

Por que se chegou a esse ponto de escancarado desafio às instituições e ao Estado de direito – com o beneplácito de uma mídia parcial e partidária, e o silêncio e a omissão do Legislativo e do Judiciário, aí incluído o Supremo Tribunal Federal, que não disse “gato” a respeito da fala de Bolsonaro?

É fácil procurar culpados no campo dos inimigos da Democracia, como a velha mídia entreguista, “elitista”, venal e reacionária, que estereotipa o negro, o gay e a mulher que diz defender, em suas novelas e programas de televisão.

Também é cômodo atribuir esse estado de coisas ao próprio fascismo e a seus expoentes surgidos nos últimos anos do ventre de um anticomunismo tosco, ignorante, imbecil que vão, do que há de mais abjeto na imprensa brasileira a filósofos de bolso, cantores de rock e astrólogos, passando por pastores caçadores de passarinhos e sacerdotes católicos fundamentalistas, com ligações com o exterior.

Mas isso equivaleria a culpar uma hiena por ser uma hiena, um abutre por ser um abutre, um escorpião por ser um escorpião.


O fascismo não é razoável, nem cordato, nem racional. Com ele, não há como ceder ou negociar. Se o fosse, não seria fascismo.

A culpa pela irresistível ascensão da extrema direita – e não há outro termo, nos aspectos quantitativo e qualitativo, que possa descrever com mais propriedade o atual processo – deve ser procurada entre aqueles que deveriam, por natureza, ter – mais que vocação – a necessidade de defender a Democracia e aqueles que, no poder, tinham a obrigação, a responsabilidade histórica e ideológica, de combatê-lo, evitando que as coisas chegassem aonde estão.

Tendo enfrentado o regime militar e procurado negociar o seu fim, com o movimento das Diretas Já e a eleição de Tancredo Neves para a Presidência da República, cabia às lideranças e partidos que conduziram esse processo ter promovido a defesa, didática, permanente, verdadeira, racional, dos valores democráticos junto à população, buscando também a renovação que fosse possível nos meios de comunicação de massa - que desde antes dos governos militares continuam basicamente os mesmos e são controlados pelas mesmas famílias – em benefício da pluralidade de opinião e da amplitude de informação, evitando que se instalasse no país um senso comum medíocre, rasteiro e estúpido, ditatorial.
Mas não o fizeram.

O Sr. Fernando Henrique Cardoso, que agora declarou que a fala do Sr. Jair Bolsonaro em defesa de um torturador ofende o país, não procurou contar, em seu governo, às novas gerações, o papel – a serviço também de interesses estrangeiros – do golpismo e do fascismo, pragas permanentes na história brasileira, no suicídio de Getúlio Vargas, na sabotagem e nas tentativas de golpe contra Juscelino ­Kubitscheck durante todo o seu mandato, na constante pressão contra Jango, até derrubá-lo, pela força das armas, em 1964.
Assim como não o fez o PT.

Nos 22 anos dos governos tucanos e petistas, nem sequer um miserável Dia da Democracia foi incluído no calendário oficial, com direito a feriado, e, depois da sua instituição pela ONU, em 2007, para ser comemorado todos os dias 15 de setembro, sua existência sequer foi lembrada, em uma prosaica campanha do Tribunal Superior Eleitoral.

Nesse absurdo país em que estamos vivendo, em que o Estado de Direito foi substituído pelo Estado de Direita, e não se pode ter mais liberdade de expressão ou de opinião, o que irrita não é o ódio irracional, sádico e sombrio dos apologistas do pensamento único, dos assassinatos e da tortura, mas a inação, a incompetência tática e a falta de visão estratégica – que nesse aspecto caracterizaram os últimos anos – daqueles que deveriam dar-lhe combate.

A esquerda errou quando fingiu que não viu o que estava ocorrendo já na véspera da Copa do Mundo. Errou quando não reagiu aos insultos, aos atentados verbais, às calúnias, judicialmente. Errou quando entregou a internet à direita e à extrema-direita, permitindo que esta última a usasse como um fantástico instrumento de mobilização, mas também abandonando os portais de maior audiência, para que o fascismo, por meio de seus trolls, conquistasse para seus argumentos e mentirosos paradigmas, milhões de brasileiros que estavam começando a se “politizar” justamente naquele momento – com o acesso à internet – devido à inclusão social e digital promovida pelo próprio governo.

Errou quando não compilou suas conquistas, com dados numéricos, incontestáveis – como o crescimento do PIB e da renda per capita ou a diminuição da dívida líquida de 2002 a 2014 – fazendo delas a base de um discurso e de um plano coerente de governo, que cobrisse, institucionalmente, a economia, a soberania, o desenvolvimento e a defesa.

Errou quando não fez uma reforma política digna desse nome, quando tinha poder e popularidade para isso, preferindo adotar, como governos passados, o fisiologismo, no convívio com o tipo de escolhos políticos que se viu na televisão no dia da votação do impeachment.

E continua errando quando quer misturar alhos e bugalhos no mesmo saco de gatos e sair atirando como uma metralhadora giratória contra tudo e contra todos, em um momento em que já ninguém quer lhe dar a mão, e taticamente, há muito pouco a fazer para reverter a situação em que se encontra.

Ao fazer isso, a esquerda está pedindo para ser isolada ainda e cada vez mais dos demais partidos e parte expressiva da “opinião pública”.

E está fazendo exatamente o que dela esperam seus inimigos. Dando murro em ponta de faca.

Deixando-se provocar e pautar, o tempo todo, pelos adversários e pelas circunstâncias.


Estamos à vontade para criticar, porque cansamo-nos de alertar, nos últimos anos, insistentemente, em artigos como “O PT, o PSDB e a arte de cevar os urubus”, “Os Pilares da Estupidez”, e “De Golpes e de Labaredas”, para o que estava ocorrendo, do ponto de vista da degradação e da expansão geométrica dos ataques repetidos, premeditados, intencionais, contra a Democracia brasileira.

É preciso denunciar o golpe desfechado?

Sim. Mas não se pode simplesmente colocar trava na porta depois da casa arrombada e tentar fazer na saída do poder o que não se fez em anos em que se estava nele, do ponto de vista da defesa da Democracia, quando se viu calmamente, da janela, de braços cruzados, que a boiada estava indo, rês a rês, inexoravelmente, para o brejo.

Tão prioritário quanto, se não muitíssimo mais importante do ponto de vista histórico e estratégico, é trabalhar com firmeza para não se isolar, perecendo politicamente – o que seria péssimo para a democracia brasileira – e tentar, em contraposição, ir isolando o fascismo com relação ao resto da sociedade, para evitar que Bolsonaro e, eventualmente, certo juiz de Curitiba – que tem sido incensado permanentemente pelos Estados Unidos – triunfem, direta ou indiretamente – transformando-se, na oposição ou no governo, em fiel da balança eleitoral e em um elemento de permanente chantagem e desestabilização, para qualquer um que venha a vencer as eleições presidenciais – agora, antecipadamente – ou em 2018.

O que nos preocupa, no risco que corre o país, não são os palhaços loucos, sempre subestimados e ridicularizados no início, como Hitler ou Mussolini, e seus genéricos locais, mas os psicopatas que medram à sua sombra, que os veem como líderes e exemplo messiânico, e acreditam piamente neles.

Esses se transformam na alma e no sustentáculo do totalitarismo, praticando os piores crimes, usando o discurso ideológico como desculpa para idolatrar o mal e desatar, doentiamente, o seu ódio, a sua devoção pela injustiça, pela dor e pela destruição de outros seres humanos.


São eles, não em troca de voto, mas por acreditar apaixonadamente nas mentiras e mitos mais absurdos, que defendem a tortura e dizem que poderiam espancar, arrebentar e matar, como reles assassinos, em seus comentários nos portais e redes sociais.

São eles que – não se iludam – poderiam tranquila e alegremente sujar suas mãos com o sangue de pessoas desarmadas porque elas pensam de forma diferente, ou de mulheres grávidas ou crianças indefesas, por serem filhos de seus adversários políticos, caso lhes dessem uma arma, um uniforme, um porrete, uma máquina de dar choque, uma carteira com o seu retrato e um emblema.

Caberá à atitude dos grandes partidos, e das forças políticas, principalmente a esquerda, e de organizações da sociedade civil, como a OAB e a Igreja, determinar se a absurda fala de Jair Bolsonaro na votação do impeachment – que equivaleu a um histórico show de strip-tease moral por parte da Câmara dos Deputados – será vista, no futuro, como um marco fundamental para a ascensão política do que existe de pior na população brasileira, ou como o ponto de inflexão que provocou a reação da sociedade contra o avanço, até agora, paulatino, inconteste, inexorável, da fascistização do país.

Mais do que quem vai “governar” a nação nos próximos meses – entre aspas mesmo, porque há cada vez menos condições de se administrar este país, ainda mais sob condições de pressão e chantagem permanentes – é isto que está em jogo neste momento. (Fonte: aqui).

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