terça-feira, 12 de abril de 2016

O IMPEACHMENT E A DIFERENÇA ENTRE PROCESSO (JURÍDICO) E JULGAMENTO (POLÍTICO)


O processo e o julgamento. O direito e a política. O STF e o STF

Por Paulo Calmon

1) “O” IMPEACHMENT E A FALÁCIA DE QUARK
Tempos difíceis. Economia enfraquecida, governo fragilizado, oposição fraca. Não há vácuo no poder: mídia de massa, polícia e justiça criminal assumindo o protagonismo político...
Distorções institucionais e usurpações funcionais são difíceis de justificar ou legitimar. Tendem a se tornar monstruosidades. Para tanto, contorce-se o discurso, a argumentação. Por isso é que se vê a distorção institucional/funcional se tornar um criadouro de falácias, fazendo a Argumentação descer ao seu patamar mais baixo, quase pueril...
“Impeachment ‘tá’ na Constituição! Não é golpe...”. Argumento, de tão reducionista, poderia muito bem inaugurar uma nova espécie de desvio na Teoria da Argumentação, o verdadeiro ápice do reducionismo: a Falácia de Quark. O “nível” argumentativo atingiu, enfim, patamares subatômicos...
Ora, a pena de morte, o confisco, a violabilidade do lar também “tão” na Constituição. E nem por isso perdem o signo da excepcionalidade e, para serem legítimos ou legitimados, exigem a concorrência de inafastáveis requisitos e condições. O só fato de existir o instituto-exceção (verdadeiro “anti-instituto”), é claro, não torna seu santo nome invocável em vão e em qualquer situação.
2) IMPEACHMENT: JULGAMENTO POLÍTICO NÃO É O MESMO QUE PROCESSAMENTO POLÍTICO.
A segunda grande falácia reducionista – não de “quark”, mas de “próton” – refere-se a reduzir todo o processo ao ato de julgar.
O “julgamento” é apenas uma parte do “processo”; via de regra, o seu fecho.
A base do pedido de “impeachment” é a ocorrência de fato que em tese configure crime de responsabilidade. Ainda que seu processamento siga regras próprias e o julgamento seja político, não deixa de ser processo-crime. Como tal, sujeita-se a normas constitucionais – próprias de um Estado de Direito.
Essa colocação do tema, aparentemente trivial, merece ser levada a sério. Possui desdobramentos relevantíssimos, inclusive quanto ao papel do Supremo Tribunal Federal (STF) no processo.
Primeiro: não se pode confundir JULGAMENTO POLÍTICO (baseado no livre convencimento) com PROCESSO POLÍTICO. No caso do impeachment presidencial, assim como, por exemplo, nas decisões do Tribunal do Júri, o JULGAMENTO é político (submetido às regras, às diretrizes e à consciência, de natureza política, de quem julga), mas o PROCESSO para ser válido tem que respeitar as regras jurídicas (o “tal” do “devido processo legal”).
O crucial ato de julgar – e somente ele – é político; mas não o processo (e o procedimento legal) que transcorre até se chegar a esse julgamento. Embora possa parecer pouco, esse traço pode ser a diferença entre um sistema democraticamente maduro e uma tirania oligárquica travestida de democracia.
Nossa Constituição, para estabelecer um Estado Democrático Social e de Direito, consagra o “devido processo legal” como um princípio inafastável, um pressuposto inarredável de um julgamento válido.
Alguém acusado de homicídio, até receber o veredicto “político” do Conselho de Sentença (Tribunal do Júri), tem que ser submetido ao devido processo legal, pressuposto de validade do próprio julgamento.
Do mesmo modo, o “impeachment”. Os parlamentares, como os jurados, julgam “politicamente”, conforme suas consciências e seu livre convencimento, sem ter de fundamentar juridicamente (ao contrário do Juiz togado); mas seu julgamento tem que ser precedido de um processo “juridicamente” legal e válido.
As regras do processo (e de sua concretização como procedimento), para serem válidas, têm que ser claras e previamente conhecidas pelos envolvidos. Aquele que preside o processo deve aplicá-las de modo vinculado (à normatização de regência) e não de forma discricionária, sujeitando-as a parâmetros de (sua) conveniência e oportunidade. Menos ainda de modo arbitrário, sem qualquer controle de motivação, finalidade e objeto. Elas se submetem ao querer do Direito, e não ao querer político de ocasião. Por isso não pode, quem dirige o processo, “esconder” as regras de procedimento ou fazer com que ele se desenvolva de um ou outro modo, a seu bel prazer, transformando-o num instrumento de direção ou coação, cujo objetivo inconfesso e subjacente é o de encabrestar o ato de julgar em si. Não é admissível, sob pena de inaceitável abuso e desvio de finalidade, usar o processo como instrumento a se obter essa ou aquela decisão (abro um parêntese: no processo em curso, é quase inacreditável ver o Presidente da Câmara dizer que irá “decidir” a forma da prática desse ou daquele ato no momento que achar mais oportuno, à sua conveniência – por exemplo, a possível ordem da votação dos deputados a partir de suas regiões ou Estados. Ora, em qualquer julgamento colegiado, a ordem de votação, quando não simultânea, segue a norma posta, ainda que por analogia).
Em suma: a Política rege o Julgamento, o Direito rege o Processo.
3) VÍCIOS DE INSTAURAÇÃO, FALTA DE JUSTA CAUSA E PAPEL DO STF
Com isso em vista, não há dúvida do relevante papel do STF quanto à instauração e ao desenvolvimento do PROCESSO, embora não tenha papel algum a desempenhar quanto ao MÉRITO, ao cerne, do eventual JULGAMENTO. Intérprete final da Constituição, o STF é o guardião máximo, por extensão, do Estado democrático de Direito, do Devido Processo Legal, da Ampla Defesa, etc.
E é nesse contexto (submissão do Processo ao Direito e do Julgamento à Política) que parecem ressair vicissitudes insuperáveis no vertente “processo de impeachment”, passíveis de correção (senão, anulação) pelo STF.
A começar pela própria instauração do processo.
O Presidente da Câmara já externou que foram vários – dezenas – de pedidos de impeachment presidencial. Todos – a exceção de um – arquivados.
O que deve determinar se alguém pode ser investigado ou processado a partir de certo pedido (a punição postulada na “notícia de crime”) não é a qualidade de quem pede. Tampouco a forma pela qual o pedido é encaminhado. Mas, sim, a sua base fática (em Direito: a “causa de pedir”). Ou seja, se determinado pedido que aponta fatos que em tese seriam crime fora antes arquivado, não poderia um pedido posterior a ele sequer sofrer processamento, a não ser pela superveniência de fato novo, juridicamente (e não politicamente!) relevante. Poderia ser prontamente arquivado por se tratar da chamada “mera reiteração” (o pedido é o mesmo – impeachment; e a causa de pedir a mesma, por exemplo, “pedaladas fiscais”). O que indica que a postulação é ou não reiteração de uma anterior não é a qualidade de quem a postula, não é o seu discurso, não são suas teses e argumentos, mas senão a sua base fática (causa de pedir) e a pretensão que veicula (pedido). Não poderia esse pedido posterior sofrer processamento somente por conveniência política que se concretize, por exemplo, em dar “preferência” a seus subscritores (argumento de autoridade e não autoridade de argumento), como forma de gerar maior impacto político-midiático, inoculando-se, nesse expediente, o vírus da manipulação e do desvio. De igual modo, o Direito, como regente do Processo, não admite que a Polícia possa “escolher discricionariamente” o que vai investigar em meio a “notícias-crimes”, o Ministério Público “escolher discricionariamente” dentre os investigados quem vai “denunciar” e o Juiz “escolher discricionariamente” dentre as denúncias oferecidas aquelas a que vai dar andamento. Visando a coerência, a isonomia de tratamentos – e evitando arbitrariedades e perseguições – o Direito cria mecanismos de estabilização e imutabilidade. Investigações arquivadas – policiais, ministeriais, administrativas – somente podem ser desarquivadas em face de fato ou prova nova (e não em razão de argumentação nova!). Essa violação, por si só, poderia sofrer o controle pelo STF, anulando as apreciações cronologicamente aleatórias e indicando a necessidade de se respeitar a ordem de apreciação prelibatória do mesmo pedido (“impeachment”), fundado em mesma causa de pedir (por exemplo, “pedalada fiscal”), que vieram embalados em postulações aviadas por pessoas diferentes.
Ainda que se entendesse viável “escolher” um pedido de “impeachment” para sofrer processamento, o expediente eleito, ao que se percebe, não apresenta um fato típico do ponto de vista criminal. A ausência de descrição de um fato típico – ou a atipicidade penal do fato descrito – deveria conduzir ao arquivamento por falta de justa causa.
O cerne do pedido sob processamento seria aquele apontado pelo MP junto ao TCU na questão da suposta manobra contábil no ano de 2015 (no atual mandato presidencial, portanto), que teria se dado sem autorização legislativa. Esta autorização, contudo, mesmo que indiretamente, já veio no final do mesmo ano, em votação do Congresso Nacional. Como o que se está tratando em tese seria CRIME, a norma faltante, ainda que editada posteriormente, retroage (para efeito de adequação típica criminal), atuando em concreto com efeito de "abolitio criminis". Revela, pois, atipicidade material da conduta e induz, outra vez, à falta de justa causa para início do procedimento.
Não cabe à Câmara, no processo de “impeachment”, em sua função atípica judicante, a um só tempo legislar e julgar. Não pode ela definir – como que em atuação legiferante casuística – se determinado fato ainda EM TESE é ou não típico. Esse tipo de enquadramento é tarefa do Direito, e não da Política. Porém, uma vez definido que determinado fato é sim típico (e sua prática configura crime de responsabilidade), cabe ao Parlamento – e somente a ele – julgar se o Presidente da República o praticou, se o fez ao desamparo de eventual excludente de responsabilidade e, tendo-o praticado, se deve ser apenado. Observe-se que também neste processo-crime podem ser admitidas as chamadas causas excludentes (de ilicitude, de culpabilidade), tal como no direito penal comum, inclusive a chamada “inexigibilidade de conduta diversa”, o que conduziria à absolvição.
Coubesse à Câmara definir o que é fato típico para efeito de crime de responsabilidade, ter-se-ia, outra vez, um sistema da mais pura tirania. Extremando ao absurdo, veja-se o eloquente exemplo: o Presidente da República espirra em público, e a Câmara, definindo que o espirro presidencial configura crime de responsabilidade, instauraria um processo de impeachment...
Aqui, outra vez, a possibilidade de submissão do tema ao STF, a quem incumbe o controle da justa causa processual. Ora, não se pode dar início a um processo-crime lastreado em fatos atípicos. E nem deixar que ele se desenvolva com base nisso.
E de novo a diferença entre processo (jurídico) e julgamento (político).
Essa diferença é a que permite, por exemplo, que a Justiça impeça que o Tribunal do Júri se debruce sobre um caso de tentativa de suicídio (fato atípico), ou que determine o trancamento de inquérito policial que verse sobre o consumo de álcool (fato atípico).
Ao STF cabe, também, podar qualquer traço de arbitrariedade ou discricionariedade que o condutor do Processo pense ter: as regras têm que ser pré-definidas e conhecidas pelos interessados, especialmente o investigado. Do contrário não há como se falar em “devido processo legal”, tampouco em ampla defesa.
Oxalá a Corte Suprema siga cumprindo seu papel! Inclusive colocando cobro aos arroubos totalitários e que põem em risco a ainda verde Democracia brasileira, que, em tempos de sinal amarelo, não sabe se avança ou se recua. Tempos difíceis...
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(Paulo Calmon – Mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio).

Fonte: aqui.

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Seguramente, uma das mais judiciosas manifestações sobre impeachment entre as até agora destacadas neste blog.

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