sábado, 23 de abril de 2016

ALENCASTRO DISSECA O GOLPE, OPS, A CONJUNTURA


'Temer vende peixe que não foi ele quem pescou'

A França sempre é referência nas citações de Luiz Felipe de Alencastro, professor emérito da Universidade Paris-Sorbonne e titular de economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV). A votação do impeachment, diz, é o retrato do que os franceses chamam de "Journée des Dupes": "Um acha que ganhou e o outro também, mas os dois perderam". Alencastro não dá como certa a implantação de um governo de Michel Temer e alerta que o tradicional clientelismo do PMDB coloca o vice diante de impasse. "O PMDB não pode ir para um programa de ajuste violento e privatização, corte de programas sociais. Se for, haverá o movimento social. Os dias que vão avançar mostrarão duas coisas: é difícil reverter a decisão, mas um governo Temer estaria diante de dificuldades consideráveis."

Valor: Como enxergou a votação do impeachment da presidente Dilma Rousseff na Câmara?

Luiz Felipe de Alencastro: Houve revertério depois da difusão do voto. Há um mês, a imprensa internacional fazia editoriais a favor do impeachment, inclusive "Le Monde". O clima mudou: os jornais estão dando editoriais e artigos dizendo do espetáculo, do paroquialismo, do lado localista e da falta de perspectiva nacional dos deputados votando um impeachment sem saber por que - votando pela família, achando que votavam pelas pedaladas de 2014 e nem ouviram o relatório do deputado Jovair Arantes (PTB-GO), que já era caótico. Sei que o Brasil é um país meio fechado para opiniões externas, mas isso tem peso em grupos dirigentes e investidores. Acho que eles têm que tomar distância deste clima de oba oba do voto do impeachment. Visivelmente alguém está sendo enganado aí.

Por quê?

Alencastro: Os franceses chamam isso de "Journée des Dupes", quando um acha que ganhou e o outro também, mas os dois perderam. E por quê? O PSDB tem um programa que é de privatização. Parte do empresariado que está apoiando o [Michel] Temer também. Ora, o PMDB é um partido clientelista. O Temer sabe disso melhor do que ninguém. Ele é um deputado que foi eleito em 53º lugar em 2006 entre os 70 de São Paulo. Sabe que o PMDB depende de favorecer o eleitorado, tanto que pegou carona no governo Fernando Henrique e nos governos do PT. O partido vive bem porque tem o maior número de prefeitos do Brasil graças a essa intermediação de qualquer camisa. O PMDB não pode ir para um programa de ajuste violento e privatização, corte de programas sociais. Se for, haverá o movimento social, que não está desmobilizado. O que desmobilizava o movimento social era esse governo. Os dias que vão avançar mostrarão duas coisas: é difícil reverter a decisão, mas um governo Temer estaria diante de dificuldades consideráveis.

Aquela votação deu a dimensão do que é a classe política brasileira?

Não. É o sistema eleitoral brasileiro, o sistema de lista aberta, em que você pega carona no mais votado. Este Congresso é o pior que temos: sem falar do número que deve contas para a Justiça. É um Congresso que não tem personalidade forte. Dos dois lados. Não tem liderança. No impeachment do Collor tinham várias. O ministério do Itamar estava formado antes de ele assumir. Collor tinha popularidade mínima e um partido que tinha virado fubá.

Essa Câmara que vimos no dia do impeachment é o retrato do eleitorado?

Não, não, não. O que representa o Brasil são os prefeitos, os governadores, o presidente. Aquilo não. O fato é que o espetáculo da Câmara foi do balacobaco.

É provável o impeachment passar no Senado? Se sim, como o senhor crê que Temer construiria esse eventual governo?

Provavelmente isso vai demorar dois, três meses. As coisas vão evoluir rapidamente. O movimento social está se manifestando. O patronato também pede medidas. O Armínio Fraga, candidato do PSDB a ministro da Fazenda, o único programa que o Aécio [Neves, presidente do PSDB e candidato à Presidência em 2014] tinha, já disse que não topa. Ficou difícil escolher um nome forte [para a Fazenda]. (Nota deste blog: Henrique Meirelles teria aceito hoje, 23, ser ministro da Fazenda de Temer). Há também movimento da Marina [Silva] por novas eleições. Acho válido se for pelo TSE [Tribunal Superior Eleitoral]. A outra proposta [antecipação de eleição presidencial], apoiada por um grupo de senadores do PT, acho inconsequente. Por enquanto está se seguindo o figurino constitucional. Não acho que haja fundamento, nem crime de responsabilidade. E não sou o único. (Nota deste blog: Alencastro, como se vê, não cai na versão da Globo, Toffoli e Celso de Mello. É que ele sabe muito bem a distinção entre RITO processual e MÉRITO DO PEDIDO DE IMPEACHMENT...).

A presidente incorporou o discurso de injustiçada, após a votação da Câmara. E abordou a questão do preconceito de gênero numa conversa com jornalistas estrangeiros.

Acho que tem razão. Duvido que fizessem esse escarcéu que fizeram na Câmara, onde a maioria é masculina, se fosse um homem presidente. Enfim, isto posto, ela tem toda a responsabilidade pela situação que está acontecendo na medida em que está num segundo mandato e errou mais do que tinha direito.

O fato de Temer ter trabalhado abertamente pelo impeachment poderia afetar a credibilidade dele numa futura gestão?

Acho que afeta. Escrevi um artigo em 2009 sobre os riscos do vice-presidencialismo. Tem gente até que acha que sou vidente [risos]. Eu dizia: ela tem zero voto, nunca disputou eleição nem de síndico, e ele sabe tudo, já foi presidente da Câmara. Isso está desequilibrado. Você imagina o Marco Maciel dando golpe, ou o José Alencar dando golpe contra o Lula? Faz parte de certa autossuficiência do Lula de não ter pesado isso. Dilma é estranha no PT, veio do PDT. Estava fechada no Rio Grande do Sul, Estado autocentrado. Ela começa o governo e muita gente diz que deu uma guinada de 180 graus e não explicou. Foi um erro que escancarou a escolha do Temer como vice. Ele puxou o carro.

Que gestos um governo Temer teria que fazer? Como poderá fazer uma repactuação?

Ele é um sujeito que não é tão bom quanto dizem. É ruim de eleição, é ruim de programação, rompeu antes da hora - com aquela carta despropositada. Não adianta tentar ficar escondendo malandragem. Mordeu os dedos depois daquela carta de ruptura. Houve vários sinais. Foi ver a Dilma. Depois a coisa se precipitou e agora passa por esperto. Mas está vendendo peixe que não foi ele que pescou. Ele tem demanda da clientela dele muito diferenciada, a clientela que o apoiou. Não falo do eleitorado. Ele vai falar na TV e tem um ar sombrio. Não tem contato com o sufrágio majoritário. E o [Eduardo] Cunha está no pé dele também.

Essa proximidade de Temer com Cunha, algo que ficou evidente no processo de impeachment, seria um fator de desestabilização?

Mas é claro! O Cunha é um sujeito que daqui para frente, cada movimento que fizer derruba prateleiras de panelas. Porque ele está com várias panelas amarradas no pé. Vai ser uma barulheira danada. E está todo mundo de olho nele. E a imprensa vai ter que estar atenta para não endossar essas manobras dele, esses casuísmos que faz para escapar de ser processado. A Suíça está lá com a ficha dele para quem quiser ver. A Dilma está dizendo isso o tempo todo. É uma espécie de mancha que tem no processo do impeachment. Há duas manchas: a traição do Temer e as acusações pesadas e aparentemente comprovadas de que o Cunha cometeu crime fiscal e de corrupção.

Que impacto ações de movimentos sociais poderiam ter num eventual governo Temer?

Vai limitar a margem de manobra do governo. O impeachment foi vendido como solução que faz disparar a bolsa e baixar o dólar. Mas as pessoas sabem que tem luta social. Nas democracias é assim. Não tem ninguém apostando em ditadura no Brasil, fora meia dúzia de cretinos. O Temer vai ter que lidar com isso. E aí é preciso vir e falar na TV. Não é tomar cafezinho, água mineral, ou o que for, e puxar uma conversa, perguntar como vai a família. Nem dizer "eu sou professor de direito". Não é por aí. Da mesma forma que a Dilma não convenceu como economista, a competência do Temer como constitucionalista também não vai convencer muita gente, porque ele se aproveitou de uma declaração de impeachment, porque num exame rigoroso das causas juridicamente substanciadas - a questão das pedaladas, um decreto que ele assinou também -, isso não configura crime de responsabilidade.

O que imagina de um governo Temer? 

Ninguém pode fazer prognósticos tão longos. Mas o movimento social no Brasil existe, está consolidado. Ele se congrega em torno desses 20% que vão votar no Lula para presidente, e 20% é muito. E tem 40% que acham que foi o melhor presidente do Brasil. Se não prenderem o Lula, ele ganha a eleição de 2018. Se eu fosse um estrategista da oposição, o objetivo número um, estando o Senado ganho [a favor do impeachment], é prender o Lula.

Do ponto de vista econômico o senhor acredita que Temer faria uma inflexão?

Total, e é isso que tem prometido. Acho até que é daí que vem a rachadura do apoio a ele. Boa parte das pessoas que são contra a Dilma não estão a favor desta inflexão. Ele já deu recados de privatização.

Reforma da Previdência?

Previdência é uma confusão dos diabos e você tem que ter diálogo social. Não só com os pobres, com a previdência do INSS, mas sobretudo a previdência pública. Isso quer dizer que ele também vai ter que contrariar juiz, procurador, esse pessoal que ganha R$ 100 mil de aposentadoria, que não vai aceitar.

Considerando a possibilidade de a presidente ser mantida, a oposição alega que ela não tem mais nenhuma condição de governar.

Vamos ver um governo medíocre se arrastando até o fim. Não é a primeira vez que isso acontece. O governo Sarney foi uma pasmaceira também, saiu com inflação de 80%. Você pode ter só quatro votos no Congresso, mas isso não é argumento para te derrubarem, dizendo que não tem maioria. Enfim, ela é presidente eleita. Não era o caso do Sarney. Não será o caso do Temer também. Quem é vice tem sempre legitimidade transitória, isso foi uma frase do Brizola para o Sarney. 

(Fonte: Jornal Valor Econômico; texto reproduzido pelo Conversa Afiada - aqui).

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