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O filme é um espetáculo escandalosamente hollywoodiano, amparado sobretudo na cenografia fantasiosa e no senso de autoderrisão. Não faltam referências depreciativas à boneca, e a própria Mattel, empresa fabricante, aparece como um antro de executivos brancos, machistas e ridículos.
Por Carlos Alberto Mattos
Até algum tempo atrás, eram os filmes que geravam subprodutos: brinquedos, roupas, objetos, etc. Agora é o contrário: produtos geram filmes em gêneros novos que eu chamo de mercodramas ou mercomédias. Blackberry, Air, Tetris, Cheetos, Lego… Cada um tem recebido sua história empapada de empreendedorismo e acenos à condição contemporânea. Mas nenhum chegou com tamanha campanha de marketing e, acredito, com tanta disposição de comentar o mundo real como Barbie.
Até muito tempo atrás, as meninas queriam ser bonecas. A mercomédia Barbie celebra o tempo em que bonecas querem ser gente e cruzar o portal que separa a terra da bonequice do mundo real. A rigor, Pinóquio já passava por essa síndrome em 1883, quando Carlo Collodi o criou como um boneco de madeira que aspirava a ser de carne e osso.
A Barbie de Greta Gerwig entra em crise existencial porque a ideia de morte, não se sabe como, surge de repente em sua loura cabeça. Esse é o gatilho que detona o conflito na intimidade da Barbie clássica, ou Estereotipada (Margot Robbie). De uma hora para outra, sua vida em rosa começa a dar defeito no reino perfeito da Barbieland, onde tudo é fingimento e felicidade absoluta. Perante a ameaça da celulite e da finitude, Barbie precisa viajar ao Mundo Real e descobrir a origem de seu transtorno.
A grande sacada do roteiro original de Greta e Noah Baumbach é trazer junto o paspalhão Ken (Ryan Gosling) para o choque de realidade. Numa Los Angeles desglamourizada, em tudo oposta à Barbieland, Ken descobre o seu mundo ideal: aquele dominado pelos machos, com seus cavalos e seu culto da força e da violência. Ao tentar implantar o patriarcado na Barbieland, Ken vai precipitar os acontecimentos decisivos do filme.
A história da boneca Barbie, iniciada em 1959, é uma sucessão de adaptações ao ideário de cada época. Depois de criada segundo um modelo desejado de moça estadunidense (magra, loura e fashion), surgiram as Barbies negra, hispânica, asiática, gordinha… E até um Ken com vitiligo. A adoção de características próprias da diversidade humana é uma estratégia comercial que visa atender às demandas identitárias ao mesmo tempo que perpetua o interesse pelo produto.
Barbie sempre carregou a ambivalência de ser um modelo de mulher-boneca, mas também estimular sentimentos de independência feminina. Como ícone cultural, inspirou criações de Andy Warhol, Al Carbee e outros artistas, além de protagonizar séries na TV e na web. O blockbuster de Greta Gerwig (Lady Bird, Adoráveis Mulheres) traz uma Barbie que se recusa a “voltar para a caix(inh)a” e encontra uma parceira humana (America Ferrera) capaz de discursar sobre a dificuldade de ser mulher numa sociedade em que dela se exigem atitudes conflitantes entre si.
Por mais que os enunciados feministas sejam claros e o deboche da masculinidade seja divertido, Barbie não consegue esconder seu contorcionismo para que a boneca se torne um símbolo de empoderamento feminino. Basta ver a conversão da garota Sasha (Ariana Greenblatt) de ativista iracunda (“Você atrasou o feminismo em 50 anos, sua fascista!”) em uma suave e rósea admiradora da Barbie revolucionária. Uma revolução que, afinal, consiste em manter tudo como era antes: um mundo perfeito onde as mulheres são felizes todos os dias, mesmo que ninguém tenha órgãos genitais.
O filme é um espetáculo escandalosamente hollywoodiano, amparado sobretudo na cenografia fantasiosa e no senso de autoderrisão. Não faltam referências depreciativas à boneca, e a própria Mattel, empresa fabricante, aparece como um antro de executivos brancos, machistas e ridículos. Ecos de 2001 – Uma Odisseia no Espaço, Toy Story e musicais de Bollywood completam a barganha de Barbie entre a sátira social e o reposicionamento de produto. - (Blog Carmattos - Aqui).
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O crítico Carlos Alberto Mattos publicou sua análise no dia 26/7, seis dias atrás. Demos um tempo, para ver as reações do público, visto que a mídia dava conta da mobilização 'monumental' que 'lideranças políticas/religiosas' articulavam contra o filme. Pelo que vimos, mera retórica.
Entreouvido verossímil: "Não vimos, ainda, o filme, mas gostamos bastante do texto do Mattos!"
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