"."Como todos os filmes de von Trier, O Grande Chefe é uma obra fria e misantrópica que não acredita nas instituições e na própria humanidade. Mas é muito engraçado.
Por Wilson Ferreira
O filme do diretor Lars von Trier, “O Grande Chefe” (The Boss of it All, 2006, disponível no MUBI), segundo o diretor, é uma comédia inocente e despretensiosa. Sua fala já é cínica e irônica, tanto quanto o tema soturno dessa comédia: como a ética sobrevivencialista e o “cinismo esclarecido” (Peter Sloterdijki) criam no nosso cotidiano (no filme, uma narrativa ao estilo “The Office”) traços psíquicos como a das pessoas que vivem situações extremas: auto-distanciamento irônico, individualidade multiforme e anestesia emocional. O dono de uma empresa inventa um personagem (o “chefe de tudo”) para dizer que apenas cumpre ordens, para evitar se indispor com subalternos em decisões mais delicadas (e duras). Por isso, contrata um ator para cumprir esse papel, transformando tudo em uma farsa de mal-entendidos e embaraços.
A experiência do Holocausto, no qual milhões foram metodicamente assassinados em campos de concentração sem uma nenhuma razão militar ou política (a não ser por razões ideológicas inescrutáveis), mais do que tragédia histórica, moldou a subjetividade contemporânea.
Para o historiador Christopher Lasch, o impacto midiático nas décadas subsequentes e a generalização do conceito de totalitarismo para o cotidiano, criou uma mentalidade sobrevivencialista. Como se existencialmente nossas próprias vidas fossem análogas aos perigos de um campo de concentração – analistas das mais diversas áreas passaram a fazer generalizações dos campos de concentração para a vida cotidiana, enfocando os campos como metáforas da vida moderna cheia de ameaças crescentes: violência, desemprego, ameaça climática. E, nesse século, relações tóxicas, assédios morais, violência sexual etc.
Para Lasch, o comportamento da vida cotidiana passa a assumir as características mais sinistras típicas de vivências em situações extremas, tais como as experiências relatadas em campos de concentração: auto-distanciamento irônico, individualidade multiforme e anestesia emocional – leia LASCH, Christopher. O Mínimo Eu, Brasiliense, 1985.
O filósofo alemão Peter Sloterdijk, no seu livro “Crítica da Razão Cínica”, sintetiza esses traços no conceito de “cinismo esclarecido”: o cínico integrado aos seus postos e privilégios (gerentes, executivos, professores, jornalistas ou diretores) que mantêm um auto-distanciamento irônico e melancólico sobre o que fazem, um sentimento de “inocência perdida”, de ironizar e depreciar a si mesmo e ao que faz (“é o que tem prá hoje”, dizem), uma falsa consciência conformista e sem sonhos diante do sistema de onde tira seus privilégios.
A série britânica The Office (2001-2003) explorou a superfície dessas questões ao explorar os efeitos cômicos das falhas de caráter de um gerente geral em uma empresa, além das gafes verbais, racismo e sexismo num escritório no qual o tom mockumentary criava esse autodistanciamento irônico e cínico.
Porém, um ano depois, o grande nome do movimento Dogma 95, o diretor dinamarquês Lars von Trier, vindo de filmes densos e brechtianos como Dogville (2003) e Manderley (2005), decidiu fazer uma comédia rápida e despretensiosa sobre o tema das relações humanas confinadas em um ambiente corporativo.
O Grande Chefe (The Boss of It All, 2006) é uma versão para o cinema de The Office muito mais anárquico e explosivo, apesar de o próprio diretor aparecer refletido nos vidros das janelas do prédio corporativo da estória (numa grua de filmagem controlando uma câmera) dizendo para o espectador que ele assistirá a uma “experiência insignificante”. Coisa que o filme decididamente não é – von Trier, ele próprio, inicia com o tom cínico esclarecido – o próprio tom da narrativa e linhas de diálogo do filme.
De início, o diretor amplia ainda mais o distanciamento irônico de um mockumentary (como o fez a série The Office), fazendo um interessante experimento cinematográfico ao usar uma técnica de câmera chamada “Automavision” que limita propositalmente a influência humana no enquadramento das câmeras: o diretor escolhe a melhor posição de câmera fixa possível e, em seguida, permite que um computador escolha aleatoriamente quando inclinar, deslocar ou ampliar”.
Não é incomum que o filme pule de um plano geral em uma cena de grupo para um plano médio de duas pessoas, depois para um close-up do rosto de uma pessoa em que a cabeça foi parcialmente cortada pela parte superior do quadro. Isso dá às cenas o efeito de terem sido filmadas várias vezes ou de inúmeros ângulos ao mesmo tempo por muitas câmeras diferentes, mas sempre parecendo “on the fly” – quase como uma transmissão ao vivo do Oscar. Por si só, isso não é um avanço estético, mas quando combinado com a natureza improvisada da história, o filme consegue algo muito próximo do brilhantismo.
O Filme
O Grande Chefe acompanha Ravn (Peter Gantzler), proprietário de uma empresa de TI dinamarquesa que contrata um ator fracassado, Kristoffer (Jens Albinus), para personificar o fictício “chefe de tudo” que seus funcionários acham que é responsável por tomar todas as decisões de negócios mais delicadas da empresa - todas o caminho dos Estados Unidos.
Ravn passou anos dizendo para seus funcionários que apenas obedecia às ordens do “chefe de tudo” norte-americano, suposta sede da empresa de TI. Covarde, Ravn conseguia se ocultar nas decisões mais delicadas da empresa, arrancando simpatia dos seus subalternos que viam nele alguém que estaria no mesmo barco das vítimas das decisões mais duras como cortes de benefícios e demissões.
Tudo ia bem até decidir vender a própria empresa. Ravn então tem a ideia de contratar um ator para fazer o papel do “chefe de tudo” para enganar alguns dos membros fundadores da empresa em sua tentativa de negociar a venda da empresa para um islandês (Fridrik Thor Fridriksson) que tem uma desagradável impressão sobre os dinamarqueses: para ele, não passam de “sentimentalóides moles”.
Mas Ravn quer ocultar algo mais grave, imoral e antiético: embolsar todo o dinheiro, enganando os co-fundadores e atual equipe de gestão da empresa.
Kristoffer é uma caricatura engraçada do tipo de ator sem humor, mergulhado na teoria, que leva seu trabalho muito a sério. Devoto escravizado de um dramaturgo e louco italiano fictício chamado Gambini, ele mergulha em sua tarefa com uma intensidade alarmante, tentando várias linhas de leituras do personagem. Inicialmente sem saber que foi jogado em um ninho de ratos, ele trata seus encontros com os seis funcionários seniores de Ravn como improvisações.
Ravn não disse nada a ele sobre os seis, que lhe emprestaram o dinheiro para estabelecer a empresa e que Ravn planeja demitir sem dar a eles sua parte justa nos lucros, assim que os papéis forem assinados. Lise (Iben Hjejle), uma funcionária que foi levada a acreditar que Svend era gay, imediatamente reconhece a mentira e pressiona Kristoffer a fazer sexo em uma mesa.
Kristoffer descobre que Ravn representou Svend de maneira diferente para cada um dos seis. Dessa maneira O Grande Chefe se transforma em uma farsa impassível de mal-entendidos e embaraços, já que vários se referem a comunicações inapropriadamente íntimas de Svend sobre as quais Kristoffer não tem a menor ideia.
O ator cínico
O primeiro aspecto que salta à mente assistindo ao filme é o chamado “argumento de Nuremberg”, como diria o relações públicas Nick Naylor no filme Obrigado por Fumar – Nuremberg, o histórico tribunal que julgou os crimes de guerra da alta cúpula nazista que não demonstrava o menor sentimento de culpa ao argumentar que apenas “cumpria ordens”.
Esse é um aspecto do cinismo esclarecido de Peter Sloterjdikj: reconhece a miséria das situações em que é parte ativa, mas procura emocionalmente se auto-distanciar para blindar a si próprio e não se envolver com nada – “apenas cumpro as ordens do chefe de tudo”.
Não é por menos que von Trier tem esse brilhante insight de aproximar o ofício de um ator com o cenário corporativo – na verdade, parece que todos sentem-se como atores desempenhando papéis que lhe são externos. Assim como o sistema do teórico da dramaturgia Constantin Stanislavski, no qual o ator não se confunde com o personagem, apenas empresta-lhe a imaginação. Como o faz nas cômicas cenas em que Kristoffer diz que tem que “consultar o personagem”, antes de responder ao seu empregador Ravn.
Assim, o filme coloca em evidência a estratégia sobrevivencialista dos tempos difíceis: ninguém parece querer se envolver com nada, apesar do mal-estar no dia a dia de trabalho ser evidente: uma funcionária solta um grito de terror toda vez que a impressora é acionada; outro é um caipira sempre na defensiva que reage agressivamente quando acha que estão caçoando das suas origens, e assim por diante.
Auto-distanciamento cínico e enxergar a si próprio como um ator. Tendência que só se aprofunda nos processos seletivos corporativos que, basicamente, transformam-se em reality shows ou games nos quais o candidato deve procurar uma persona (desde a entrevista) e deve descobrir qual o papel que a empresa exige que ele desempenhe (chama-se isso de “inteligência emocional”). “Vestir a camisa da empresa” e chamar funcionários de “colaboradores” é uma das facetas linguísticas desse cinismo esclarecido.
Como todos os filmes de von Trier, O Grande Chefe é uma obra fria e misantrópica que não acredita nas instituições e na própria humanidade. Mas também é muito engraçado. Aqueles no topo da hierarquia corporativa, como Ravn e Finnur, são mentirosos e manipuladores. Abaixo deles estão tolos presunçosos, cegos guiando outros cegos, interpretando papéis secundários que eles se iludem acreditando serem papéis principais. - (Fonte: Cinegnose - Aqui).
Ficha Técnica |
Título: The Boss of it All |
Direção: Lars von Trier |
Roteiro: Lars von Trier |
Elenco: Peter Gantzler, Jens Albinus, Fridrik Thor Fridriksson, Iben Hjejle |
Produção: Zentropa Productions, Memfilms |
Distribuição: MUBI |
Ano: 2006 |
País: Dinamarca |
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