terça-feira, 23 de maio de 2023

TRÊS PERDIDOS NUMA NOITE SUJA


A CIDADE DOS ABISMOS

Por Carlos Alberto Mattos

Para as pessoas comuns, a justiça só vem mesmo em sonhos. É o que parece afirmar, ao fim e ao cabo, a ficção experimental de Priscyla Bettim e Renato Coelho. Pensando bem, nem todas as personagens de A Cidade dos Abismos são absolutamente comuns. Glória (Verônica Valenttino) é uma mulher trans. Kakule (Guylain Mukendi) é um imigrante de país africano não especificado que pilota um pequeno bar. As menos incomuns são Bia (Carolina Castanha), montadora de filmes, e Maya (Sofia Riccardi), a vítima do crime que precipita a história depois de passados 30 minutos de projeção.

A base realista do filme – uma investigação de Glória, Bia e Kakule à margem da polícia numa noite de Natal – é constantemente fragmentada por inserções irrealistas. As pessoas olham, falam e cantam para a câmera em frequentes quebras da quarta parede; as imagens se arrebentam em procedimentos típicos do cinema experimental; citações de poemas interrompem a ação. Uma teatralidade melancólica domina as falas e movimentos dos atores e atrizes. A luz de Rodrigo Pannacci é de corte expressionista. A trama evolui em ritmo de alucinação lenta, com arroubos de velocidade aqui e ali. Numa sequência de perseguição automobilística, por exemplo, a montagem e a música concreta substituem a aceleração que se esperaria dos carros.

Em alguns momentos, fui levado a evocar os primeiros filmes de Fassbinder; em outros, as encenações extravagantes de Carmelo Bene. Essas eventuais semelhanças, contudo, aparecem diluídas num argumento titubeante, que não consegue se afirmar dramaticamente. A produção, bastante modesta, impede o filme de ser mais sugestivo. Além disso, tudo soa bastante dissonante, assim como o dueto entre Arrigo Barnabé e Verônica Valenttino.

Arrigo, que compôs a trilha musical e interpreta também um organista de igreja, não é o único ícone da vanguarda paulistana a marcar presença no filme. O ator Marcelo Drummond interpreta um aplicador de silicone, o crítico e curador Francis Vogner dos Reis faz uma cena na Cinemateca Brasileira, o poeta Claudio Willer vive um misterioso jogador de cartas e até o Padre Julio Lancellotti contribui com uma homilia sobre a misericórdia divina. A dedicatória final é para a memória de Luiz Rosemberg Filho, que certamente gostaria da cena em que um rodo, ao invés de recolher, espalha sangue no chão de um banheiro.  (Fonte: Blog Carmattos - Aqui).

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