A concursocracia, a Teoria da Graxa e os testículos despedaçados
Por Lenio Luiz Streck
Estava escrevendo uma coluna sobre o professor de cursinho autodenominado “O mascarado do direito maceteado” (ver aqui esse vídeo do fim do mundo), quando me deparei com o episódio do concurso do Ministério Público de Minas Gerais que indagou acerca da teoria da graxa. Resolvi parar as máquinas para escrever sobre isso.
Tenho denunciado esse estado de coisas há mais de 25 anos. Quando a maioria dos concurseiros nasceu, eu já escrevia sobre esse assunto. Os leitores sabem de minhas denúncias sobre questões de concurso tipo Caio quer matar Tício com veneno; só usa meia dose; Mévio, sem Caio saber, também quer matar Tício; incompetente, também só usa meia dose. Duas meias doses dão uma inteira. Caio morre. Qual é a solução? Ou Caio está pendurado à beira do precipício. Vai cair. Ticio pisa nos seus dedos... Uau. Ou Caio vai para o meio do mato e se fantasia de veado (cervo). Ticio, indo caçar, vê a galhada e atira. Bingo.
Eis a explicação “jenial” sobre erro de tipo. Sem contar a pergunta sobre os gêmeos xifópagos; um dá uma facada no outro... Eu dizia, então: na minha rua tem vários xifópagos. Eles andam armados. Perigosos... Ah: lembram-se da ladra Jane, que furtou um carro em Cuiabá? (ler aqui)
E assim foi se forjando um imaginário de ficções. Decorebas, pegadinhas, quiz shows. Locus para o surgimento de professores que querem facilitar tudo. Cantam. Choram. Vestem-se de mulher. Põem máscaras. E escrevem plastificações. Direitos mastigados. Forma-se, como no medievo, uma enorme indústria em torno dos castelos. Bem lucrativo. Vejam a indústria de apostilas, por exemplo (aqui).
Pois o concurso do MP-MG indagou, agora, sobre a “teoria” da graxa. Claro, tratava da corrupção. Mesmo que em outros campos haja menções a esse tipo de fenômeno de “vícios privados, benefícios públicos” (essa é a tese liberal do Barão de Mandeville que está ou deveria estar por trás da tal teoria — sic — da graxa — e olha que já escrevi muitíssimo sobre a tese do Barão), não me parece que a importação jabuticaba para um concurso tenha alguma sustentabilidade, a não ser como pegadinha. Alguém dirá: mas é só esta pergunta entre tantas e o professor Lenio pegou esta. Respondo: primeiro, não vi as outras (vejam o Post scriptum); segundo, esta já é suficiente para, simbolicamente, mostrar o estado da arte.
Consta que a teoria da graxa é o contraponto da “bola de neve” e o estado Vampiro (sic). Ok. E daí? Mas isso é no campo da economia. Como trazer isso para o Direito e que importância teria? Dá uma monografia ou TCC? Quem sabe. Mas uma questão de concurso? Como adequar isso ao edital? Wagner Frascesco fez um belo texto sobre o assunto. No Facebook, Aury Lopes também fez belas críticas, inclusive falando de uma “teoria” que eu não conhecia: a teoria dos testículos despedaçados (balls brocken). Não resisto em dizer: isso é um pé no saco.
Sigo. As redes sociais espinafraram a prova e a pergunta. Por todos, cito Rogerio Sanches, Guilherme Madeira e Aury (os três aqui). E uma estudante levantou a lebre. Consta que a questão somente foi feita porque ela só foi abordada no curso do Damásio Niterói. Logo, quem não frequentou o curso, danou-se. A banca vai ter de se explicar. Ou não... Seria um estamentalismo concurseiro? O concurso também cobra sobre o “Estado Vampiro”. Sem comentários. Cá para nós: um agente político do Estado (no caso membro do ministério público), que receberá salário de mais de 25 mil, estudar por apostilas e resumões (para dizer o menos) e ser inquirido acerca de “teorias” como da graxa, etc? O Brasil não pode mais do que isso? Bom, as perguntas acabam atendendo a esse tipo de mercado. É o que parece, pois não? Depois nos queixamos...!
Dias desses o advogado e mestrando Jeferson Gomes ouviu, no aeroporto de Curitiba, um grupo de concursandos para juiz federal falando que os cursos preparatórios — que eles frequenta(ra)m — ensinam que acordo de "doçura" ou "brandura" nada mais é que o acordo de leniência (mas por que então essa nomenclatura ridícula !?). Daí até a teoria da graxa e outros parangolês é só um pulo.
Até que ponto chegamos? Mas já não bastam resumos; eles já são considerados longos; houve uma adaptação darwiniana e alguém teve a ideia de fazer o resumo do resumo ou o “resumão” jurídico plastificado. Ou “focanoresumo”, como fez uma moça (não sei se foca é verbo ou animal). Daí a explosão do mercado para livros facilitados, plastificados, mastigados, tuitados, esquadrinhados e outras coisas desse jaez. Publica-se tudo às pressas: um livro esquematizado de processo datado de 2017 falando do novo Código de Processo Civil ainda fala em processo cautelar... (deveria falar em tutela cautelar). Há livros que comentam o CPC com base no de 1973. No caso, a pressa é amiga das vendas. E dá muitos likes no Face. “Monstro”, alguns postam. Bom para concurso.
Pensando bem, no fundo esse tipo de literatura jurídica e perguntas em concursos públicos (lato sensu) colabora para a transformação do Direito em pegadinhas e outros quejandos. Algo como “você pode aprender a ser tolo”. Há um trabalho feito por professores norte-americanos e alemães (Shimer University e Scheißwald Universität) intitulado Ignorance can be science: you can learn to be dumb. Algo como Ignorância pode ser ciência — você pode aprender a ser burro. Vai virar best seller.
Hoje existe até fitness jurídico (ver aqui). Coaching também está na moda (ver aqui). Há professores que põem mascara tipo 50 tons de cinza para vender seu peixe (ver aqui de novo). Tem até sushi-aula de direito administrativo e gramática — com dois teachers sushi mans (aqui). E simplificações como esta. E mais esta, a do Imperador (veja aqui). Impressionante.
Fui aluno de Warat já em 1983. Ele já denunciava tudo isso. Falava da praga dos discursos prêt-à-porters (e eu acrescentei: prêt-à-penser e prêt-à-parler). No que transformamos o ensino jurídico? E os cursinhos? E os protocursinhos? E a produção da concursaria? A resumocracia venceu. Ou enfrentamos isso de frente ou devemos desistir e nos conformarmos com o império do standard.
Não tenho muito a dizer, depois do que já escrevi e falei nestas décadas recentes. Apenas para dizer que, enquanto o Brasil está ardendo, concursos para ingresso em carreira jurídica do quilate da magistratura e do Ministério Público perguntam coisas como se leniência é doçura e sobre a teoria da graxa.
Bom, de todo modo, parece que o sinal foi dado. O apocalipse chegou. Só não sei onde será travado o Armagedom. Meu bunker está pronto.
Post scriptum: A propósito, o gabarito está errado na questão 2. A alternativa “b” está errada, mas a “d” também. Por qual razão a teoria estruturante permite a diferenciação entre neoconstitucionalismo e pós-positivismo? Poxa, existem vários neoconstitucionalismos. A maioria se diz pós-positivista. Ou todos. O principal livro que lançou essa ideia por aqui tem um “esse” entre parênteses no final da palavra “neoconstitucionalismo(s)”. Mas como é possível afirmar isso deste modo em uma prova objetiva? Pergunto: O que a questão quer dizer — se entendi — é que, lendo Müller, saberei distinguir neoconstitucionalismo de pós-positivismo? Aliás, é duvidoso dizer que neoconstitucionalismo é, efetivamente, uma postura pós-positivista. E qual pós-positivismo? E qual o positivismo que o neoconstitucionalismo superaria? Existem no mínimo dez tipos ou correntes positivistas. A alternativa é nula. Só se salva com muito esforço, dizendo que a “b” é mais incorreta que a “d”.
Ainda: a alternativa “c” também é errada: “âmbito normativo” não é o próprio objeto, envolvendo exatamente elementos concretos? Âmbito normativo não seria a Normbereich? De onde saiu o “dados não linguísticos”? Existiriam coisas sem nome? Coisas sem “sentido” (que sempre são linguísticos)? Os fatos seriam elementos “não linguísticos”? Sim, sei que a norma não se reduz aos dados linguísticos (esse é o busílis da tese de Müller), porque também contém os dados da realidade. Mas como essa realidade ou dados reais são expressos? Ao que sei, Normbereich é o resultado da aplicação da Normprogram ao conjunto de fatos (Sachverhalt). Mas, sabe-se lá o que o arguidor pretendeu. Poderia falar, ainda, da questão da “problematização” de que fala a alternativa “c”. Mas, deixemos assim. O mundo dos concursos cria uma linguagem própria.
Ainda: na questão 8, a alternativa “c” é incorreta... OK. Mas a “d” também. De qual proporcionalidade o concurso fala? Se é a de Alexy, parece que não tem muito a ver. Proporcionalidade em Alexy não é um princípio, mas uma máxima — a máxima da proporcionalidade (Verhältnismäßigkeitsgrundsatz), que é o critério para avaliar a colisão entre princípios, subdividido em três submáximas. Além disso, em sua Teoria dos Princípios, não há qualquer referência à “finalidade legítima” como preceito relacionado à noção de proporcionalidade. Se não se trata da “proporcionalidade” no sentido utilizado por Alexy, a questão deveria ter assim explicitado. Não existe um conceito “fundamental” ou “universal” de “proporcionalidade”. Proporcionalidade se transformou em um enunciado performativo. A questão é objetiva e não pode deixar esse tipo de dúvida. Tem-se a impressão que o enunciado constante na alternativa “d” foi produto de um recorta e cola de algum julgado STF. Se sim, deveria estar contextualizado. Proporcionalidade é algo complexo e demanda definições prévias. Mas, de novo, o mundo dos concursos cria linguagens próprias...
Há muito mais. Mas a coluna não cuida de revisar provas de concursos. Mas uma boa filtragem daria outra cara à prova.
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