domingo, 12 de junho de 2016

REFLEXÕES DIRIGIDAS A COBRAS CRIADAS


Algumas carapuças antigas para as cobras criadas deste estranhíssimo Brasil pré-pré-moderno

Por Sebastião Nunes

O antropólogo Lévi-Strauss afirmou, séculos atrás, que o Brasil passou da barbárie à decadência sem passar pela civilização.
            O cientista político Renato Lessa escreveu, recentemente, na revista “Ciência Hoje”, que “inventamos uma devastadora usina de deflação da democracia”. Segundo ele, a face mais renitente de nossa crise atual repousa impávida em grave quadro de recessão cultural e educacional.
            Diante dessas duas declarações e do processo golpista vivido na última semana (Nota deste blog: O texto é de meados de maio), resolvi compilar, mutatis mutandis, pequenos trechos de pensadores antigos da minha predileção e tentar entender o buraco sem fundo em que nos metemos.
            Thorstein Veblen: Em nenhuma fase cultural conhecida os dons de bondade e compaixão favorecem a vida do indivíduo. Pode-se dizer que a falta de escrúpulos, de comiseração e de honestidade contribui para aumentar o êxito do indivíduo na cultura pecuniária. As pessoas que tiveram maior êxito em todas as épocas têm sido desse tipo.
            Albert Camus: Antigamente os filósofos pensavam mais do que liam. Por isso se apegavam tanto ao concreto. A mídia mudou tudo isso. Ouve-se mais do que se pensa. Atualmente não temos filosofia, apenas comentários.
            Herbert Marcuse: Se os indivíduos estão pré-condicionados de tal forma que os bens de consumo incluem também pensamentos, sentimentos e aspirações, por que deveriam eles pensar, sentir e imaginar por si mesmos?
            Norman Brown: As características da propriedade não são simplesmente transferidas da bosta para o dinheiro; pelo contrário, dinheiro é bosta, porque o erotismo anal continua no inconsciente.
            Edgar Allan Poe: Um corvo furta; uma raposa engana; uma doninha astucia; um homem trapaceia. Trapacear é seu destino. Por isso, quando um homem trapaceia, nós dizemos que ele está feito.
            Maurice Blanchot: O que recusamos não é sem valor nem sem importância. E é exatamente por isso que a recusa é necessária. Há uma razão falsa que não aceitaremos mais. Há uma aparência de sabedoria que nos causa horror. Há uma oferta de acordo e de conciliação que não ouviremos. Uma ruptura se produz. Fomos reduzidos a essa franqueza que não tolera mais a cumplicidade.
            Michel Foucault: Não há uma natureza criminosa, mas jogos de força que, segundo a classe a que pertencem os indivíduos, os conduzirão ao poder ou à prisão.
            Herbert Marcuse: A simples ausência da propaganda e de todos os meios doutrinários de informação mergulharia o indivíduo em um vazio dramático, onde ele teria a oportunidade de se maravilhar e de pensar, de conhecer a si mesmo e à sua sociedade. Privado de seus falsos pais, ele teria de aprender o ABC novamente. O não-funcionamento da televisão e da mídia aliada poderia então realizar o que as contradições inerentes ao capitalismo não puderam fazer: a desintegração do sistema.
            Thorstein Veblen: Ferocidade e astúcia, as duas principais características bárbaras, constituem a atitude espiritual predadora. São expressões de um hábito mental estreitamente egoísta. Ambas são altamente úteis para a convivência individual numa vida orientada para o êxito pessoal. Ambas são estimuladas pela cultura pecuniária. Mas ambas são igualmente inúteis para as finalidades da vida coletiva.
            Norman Brown: A atração pelo dinheiro toma o lugar de todas as necessidades humanas legítimas. A acumulação de riqueza é, na realidade, o empobrecimento da natureza humana. O efeito é substituir por uma abstração, o “Homo economicus”, a totalidade da natureza humana, e assim desumanizá-la. (...) E essa desumanizada natureza humana produz uma consciência desumana, na qual o dinheiro está divorciado da vida real. O capitalismo nos fez tão estúpidos que os objetos só existem se pudermos possuí-los.
            Herbert Marcuse: A livre iniciativa nunca foi, desde seus primórdios, uma bênção. Como liberdade de escolha entre trabalhar ou passar fome, ela significou esforço excessivo, insegurança e medo para a grande maioria da população. Se o indivíduo não fosse compelido a se submeter ao mercado, o fim dessa espécie de liberdade seria uma das maiores conquistas da civilização.
            Pier Paolo Pasolini: Não há dúvida de que a televisão é o meio de informação mais autoritário e repressivo do mundo.
            Michel Foucault: A mudança de uma criminalidade de sangue para uma criminalidade de fraude faz parte de um mecanismo bastante complexo, no qual predominam o desenvolvimento da produção, o aumento das riquezas, uma valorização jurídica e moral mais intensa das relações de propriedade, além de métodos de vigilância mais rigorosos.
            Norman Brown: O que as elegantes leis da oferta e da procura realmente descrevem são as extravagâncias de um animal que confundiu, sem perceber, excremento com alimento e que, como na sexualidade infantil, não persegue qualquer “objetivo real”. Não havendo objetivo real, a aquisição não tem limites. Daí a premissa psicológica de que uma economia de mercado não é, como na teoria clássica da troca, aquela na qual os agentes sabem o que querem, mas aquela em que eles não sabem o que querem. Nos países capitalistas, a publicidade existe para criar demandas irracionais e manter o consumidor confuso. Sem a confusão do consumidor, perpetuada pela publicidade, a economia sofreria um colapso.
            Herbert Marcuse: Na medida em que a consciência é determinada pelas exigências e interesses da sociedade estabelecida ela não é livre. Na medida em que a sociedade estabelecida é irracional, a consciência se torna livre somente pela mais alta racionalidade histórica na luta contra a sociedade estabelecida. A verdade e a liberdade do pensamento negativo têm seu espaço e sua razão nessa luta.
            Pier Paolo Pasolini: A ânsia do consumo é uma ânsia de obediência a uma ordem não anunciada. Cada um sente a ânsia, degradante, de ser igual aos outros no consumir: porque esta é a ordem que inconscientemente recebeu e à qual “deve” obedecer, sob pena de se sentir diferente. Nunca a diferença foi um delito tão pavoroso quanto neste período de tolerância.
            Norman Brown: A humanidade continua fazendo a história sem qualquer ideia consciente do que realmente quer ou sob que condições pode deixar de ser infeliz. De fato, a humanidade parece estar se tornando cada vez mais infeliz, e chamando essa infelicidade de progresso.
             São ideias antigas, repito, escritas há 40 ou mais anos. Mas muitas delas são também proféticas e – desconfio – ainda válidas para este nosso país de comédia.
(Ilustração: Colagem do autor sobre cobra cascavel velha e carapuça nova) - Fonte: aqui.

Nenhum comentário: