terça-feira, 30 de agosto de 2011

O BRASIL E A AMÉRICA LATINA


Livro reflete ignorância brasileira sobre a América Latina

Por Sylvia Colombo, in Folha.com

Brasileiros, em geral, têm uma visão estereotipada e mal-informada sobre a América Latina. A raiz disso está no preconceito que nossa elite do século 19 tinha de tudo o que acontecia para além de nossas fronteiras.

País que não conheceu a guerra para se tornar independente e que teve fronteiras estabelecidas desde cedo, o Brasil nunca se sentiu parte daquilo que o rodeia.

Por conta de sua relativa posição confortável, teve dificuldades para entender que essas nações, ao saírem de lutas sangrentas, tiveram de definir fronteiras e sistemas de governo, além de levantar economias. Um caminho mais complexo que o nosso, e que levava a novos embates.

Aos olhos do Brasil, o que acontecia do lado de lá sempre pareceu algo incompreensível e folclórico, caudilhos selvagens que não se entendiam e anarquia popular constante. Parecia que esses povos "não davam certo" por serem incompetentes, desconsiderando suas dificuldades, presentes desde o primeiro dia de seus estados nacionais.

O desconhecimento da história, desde então, provocou distanciamento e, em muitos casos, puro preconceito.

Um exemplo deste último caso é o "Guia Politicamente Incorreto da América Latina", dos jornalistas Leandro Narloch e Duda Teixeira, que presta um desserviço ao conhecimento regional, ao reforçar essa mistura de presunção e desdém pela história latino-americana.

O livro diz querer atingir o "falso herói latino-americano". Seus alvos são Che Guevara, Simón Bolívar, Juan Domingo Perón, Pancho Villa, Salvador Allende, os povos pré-colombianos e os revolucionários do Haiti.

Os autores reforçam traços que consideram extravagantes desses personagens e dizem que, por seus caprichos ou sua estupidez, esses ditos falsos heróis acabaram com as chances de seus respectivos países de passarem a integrar um suposto mundo evoluído.

Em todos os casos, ignoram a história e o contexto social que deram origem a essas figuras.
Por exemplo, no capítulo dedicado a Perón, parte-se de uma premissa simplista e equivocada. Para os autores, a Argentina, nos anos 1940, tinha "tudo para decolar", mas foi "só Perón aparecer" que o país passou a "apontar para baixo".

Em primeiro lugar, não é certo que tudo estava tão bem. O processo de independência argentino foi conflituoso e demorou para se consolidar. Entre 1816, quando foi declarada a emancipação, até 1862, quando Bartolomé Mitre assumiu como presidente do país unificado, houve muitos embates entre Buenos Aires e as províncias. Embates estes que estão presentes até hoje, basta analisar o conflito entre Cristina Kirchner e o campo argentino, em 2008.

Narloch e Teixeira dizem que a partir da Constituição de 1853, o país se organizou e começou a prosperar. Errado. Nesse momento, só para se ter uma ideia, Buenos Aires, a principal província, se recusava a integrar a então chamada Confederação Argentina.

A chegada dos imigrantes europeus é apresentada como um fator altamente positivo, mas os autores passam por alto pelo fato de que sua incorporação à sociedade também gerou muitos conflitos. Só para se ter uma ideia, durante a epidemia de febre amarela que atingiu Buenos Aires em 1871, os italianos foram responsabilizados pela população e hostilizados. O presidente Domingo Faustino Sarmiento (1868-1874) diversas vezes se impacientou com a falta de compromisso dos europeus com a sociedade, acusando-os de virem ao país apenas atrás de lucro fácil.

É certo que o país estava bem economicamente quando Perón assumiu o poder. Mas é equivocado dizer que ele estragou tudo sozinho. Um presidente é fruto de um contexto. Perón teve amplo apoio popular e de parte da elite. Se o peronismo faz bem ou mal ao país, é uma outra discussão, o que não se pode é considerar o general um extraterrestre caprichoso e autoritário que pousou em Buenos Aires e acabou com a prosperidade argentina.

Em alguns casos, a dupla de autores fala como se tivesse descoberto a roda. Dizer, a essa altura do século 21, que Che Guevara era um personagem violento como se fosse uma novidade é chover no molhado. Não só já foi feita a revisão desse personagem, como até no cinema ela foi parar, no filme "Che" (2008), de Steven Soderbergh. Cuba é hoje uma ditadura e com a economia em frangalhos, só esquerdistas muito radicais ainda a defendem como modelo.

No capítulo sobre Simon Bolívar, fica claro que a intenção não é entender o personagem, mas atacar Hugo Chávez. Tampouco aqui dizem algo novo. Que Bolívar era um aristocrata criollo e nada socialista, está em quase todas as suas biografias.

Isso não diminui sua importância no processo de emancipação. Foram em geral esses criollos que sentiram o vazio deixado pela queda da coroa espanhola em mãos francesas, queriam liberdade de comércio, liam os livros com as ideias iluministas, etc.

Os autores deitam e rolam em cima de uma frase que Bolívar efetivamente escreveu: "A melhor coisa a fazer na América é ir embora". Mas não explicam que ela foi dita pouco antes de sua morte, com o líder adoecido e decepcionado.

Mas o encerramento desse capítulo entrega o verdadeiro objetivo dos autores. Dizem que o pensamento de Bolívar está vivo "a julgar pela ditadura que a Venezuela se transformou nos últimos dez anos". Cabe lembrar que a Venezuela não é uma ditadura, como Cuba hoje ou o Chile sob Pinochet. Pode-se considerar Chávez um mau governante, populista, amigo de líderes indefensáveis, mas foi eleito pelo povo venezuelano.

No capítulo que trata dos índios, os autores sugerem que a conquista não foi tão violenta assim e que índios também eram sanguinários.

É sabido que astecas e incas dominavam outros povos e que mantinham seus impérios na base da força. Igualmente que os astecas faziam sacrifícios humanos para suas divindades, o que sem dúvida é um horror.

Porém, os autores escorregam quando sugerem que os espanhóis foram melhores porque fizeram a autocrítica de seus atos violentos, enquanto os índios não.

Para exemplificar, contam rapidamente a história do frei Bartolomé de las Casas (1474-1566), que efetivamente levou à coroa espanhola reclamações sobre o modo como os indígenas eram tratados.

O que Narloch e Teixeira não contam é que Las Casas foi uma voz praticamente isolada em seu tempo, e que teve muitos problemas para ser ouvido até ser levado em consideração. Não é possível sugerir que a partir dele os espanhóis ficaram completamente bonzinhos.

A repulsa que os autores sentem pelas culturas latino-americanas é notória e se faz notar em pequenos detalhes. Dizem, por exemplo, que mexicanos são exóticos porque celebram o Dia dos Mortos saindo às ruas para se divertir com esqueletos. Alguma explicação sobre como surgiu essa tradição, qual o tamanho da festa e o que ela significa para o povo mexicano? Nada. É coisa de quem provavelmente sai muito pouco do próprio bairro.

Os estereótipos não param de chover, sem qualquer curiosidade para interpretá-los e com o único objetivo de ridicularizar tudo.

Em sua "receita para se preparar um bom latino-americano", dizem que é "um requisito moral usar ponchos e saias coloridas --ou pelo menos desfilar com um colar de artesanato indígena." Me pergunto se os autores dessa frase andaram nos últimos tempos pelas ruas das grandes cidades latino-americanas, como Buenos Aires, Santiago, Bogotá ou Montevidéu. É realmente assim que imaginam que as pessoas andem pelas ruas? Se acham isso é porque faltou então um mínimo de pesquisa de campo.

Não se trata de ser contra revisões da história. Mas que sejam feitas tentando entender a história, não folclorizando seus personagens e lendo tudo o que foi dito antes como obra de historiadores marxistas ideologicamente comprometidos.

Com seu "Guia Politicamente Incorreto da América Latina", Narloch e Teixeira colocam mais um tijolinho no muro de ignorância e soberba que separam o Brasil do resto do continente.

2 comentários:

Só Livros Lidos disse...

Concordo com a Sylvia Colombo; não somos contra a revisão historiográfica, mas contra a forma de como ela é às vezes feita. A História é uma Ciência como todas as outras, para se escrever História é necessário muita pesquisa, comparação de dados, confirmar a veracidade das fontes e cursar, de fato, pelo menos os cinco anos de graduação do Curso de História. O que mais me intriga é que todos esses jornalistas que dizem adorar História, não são formados e não possuem as mínimas condições de fazê-lo.

Abs, Dodó,

Mário

Dodó Macedo disse...

Mário, concordo com suas observações. No caso em apreço, os dois escribas (que integram o staff da revista Veja...) ao que parece estão preocupados basicamente em agradar a seus 'correligionários', desancando/ridicularizando as figuras incensadas por muitos dos parceiros do Brasil (e portanto do grupo que governa o Brasil). E, contanto que esse propósito seja alcançado, dane-se a História.
Um abraço e grato pela visita e comentário.