sábado, 28 de novembro de 2020

A POLÍTICA FISCAL PRATICADA NO BRASIL É IRRESPONSÁVEL

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"...filas de economistas pregando que a responsabilidade fiscal é cortar gastos, cortar investimentos, cortar o que for. Cortar o acesso ao alimento, à saúde, à educação, ao emprego e à moradia, sim, é que é irresponsável. Tanto fiscal quanto moralmente."


Por César Locatelli

Para quase todos os problemas dessa vida há mais de uma saída. Por que haveria de ser diferente para o equilíbrio ou desequilíbrio entre os gastos e a arrecadação dos governos? E, no entanto, só o que ouvimos é que é preciso cortar gastos. Desfilam, como misses pelos meios empresariais de comunicação, filas de economistas pregando que a responsabilidade fiscal é cortar gastos, cortar investimentos, cortar o que for. Cortar o acesso ao alimento, à saúde, à educação, ao emprego e à moradia, sim, é que é irresponsável. Tanto fiscal quanto moralmente. Mas parece pecado falar em aumento da tributação ou mesmo em tornar mais justa a cobrança de impostos.

Um importante e oportuno livro, “Economia pós-pandemia: desmontando os mitos da austeridade fiscal e construindo um novo paradigma econômico”, foi lançado (...) em recente evento virtual, muito rico em ideias para correção do rumo ao desastre que trilha nosso país.

Austeridade é racista

“A política fiscal é uma dimensão fundamental do racismo”, afirmam Sílvio Almeida, Waleska Miguel Batista e Pedro Rossi em seu artigo, “Racismo na economia e na austeridade fiscal”, para o livro.

Um modelo de cobrança de impostos que privilegia proporcionalmente os mais ricos e corta gastos sociais prejudica os mais pobres e, consequentemente, o grupo não branco que compõe sua maior parte, como afirmam os autores do artigo:

“No Brasil, a política fiscal contribui para o aumento das desigualdades pelo lado da tributação e para redução dessas desigualdades pelo lado do gasto público, especialmente os gastos sociais. Não obstante, o programa de austeridade não visa transformações pelo lado da arrecadação, mas busca reduzir justamente o lado que contribui para a redução das desigualdades e que beneficia proporcionalmente mais a população negra.”

O Teto de Gastos faz mal à saúde

É mais do que necessário perguntar se já estamos em uma fase da pandemia em que podemos relaxar e cortar os gastos com saúde, se é que mesmo finda a pandemia será razoável reduzir os recursos dos cuidados de saúde. Os números recentes indicam claramente que a resposta é não. Entretanto, o projeto de lei que determina o orçamento de 2021 (Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias) prevê um corte de R$ 35 bilhões na área da saúde, em relação a 2020, nos informam Bruno Moretti, Francisco R. Funcia e Carlos Octávio Ocké-Reis, em seu artigo para o mesmo livro. Reforçam eles:

“Caso se queira preservar vidas e empregos, o período pós-pandemia requer regras de gasto modernas que viabilizem despesas primárias com forte efeito multiplicador e redistributivo, especialmente as de saúde. Ademais, a sustentabilidade fiscal não pode prescindir de medidas pelo lado da receita, ampliando a tributação de renda e patrimônio e revendo isenções tributárias e renúncias fiscais que apenas agravam a forte concentração de renda brasileira.”

A educação ainda é muito aquém do mínimo de dignidade

Andressa Pellanda e Daniel Cara, que contribuem com o artigo “Educação na pandemia: oferta e financiamento remotos”, ressaltam que a área mais prejudicada pelo Teto de Gastos foi a educação que, só em 2019, perdeu R$ 32,6 bilhões. E complementam:

“Não há caminho que reverta a necessidade de derrubada da EC 95 [Teto de Gastos] para que possamos dedicar maiores investimentos à educação. A permanência de tal emenda e de tais políticas de austeridade tem ceifado não somente vidas, como também condições dignas de trabalho para milhões de profissionais da educação e o futuro de milhões de estudantes brasileiros.”

Mito da austeridade expansionista

Os defensores da austeridade repetem há anos, sem qualquer evidência que comprove o que afirmam, que ao cortar gastos haverá crescimento econômico e toda a sociedade se beneficiará. O exemplo mais próximo de que essa afirmação é um mito sem respaldo na realidade das economias é o próprio Brasil onde há 5 anos impera esse discurso de que o Teto de Gastos trará crescimento e o que se vê é a economia patinando sem sair do lugar. Os próprios autores dessa tese, de que a austeridade faz a economia expandir, já concluíram que, em geral, o corte de gastos tem efeitos negativos no crescimento, como nos contam Laura Carvalho e Pedro Rossi, no texto “Mitos fiscais, dívida pública e tamanho do Estado”, no mesmo livro. E continuam:

“O debate brasileiro é permeado pela ideia da austeridade fiscal expansionista. Essa ideia sustenta que um aperto fiscal leva ao crescimento econômico uma vez que melhora a confiança dos agentes e tem origem nos trabalhos de Alberto Alesina e outros autores. Contudo, vários estudos empíricos rejeitaram a austeridade expansionista. O trabalho de Jayadev e Konczal (2010), por exemplo, mostra que os países que obtiveram sucesso com consolidação fiscal apontados por Alesina e Ardanha estavam crescendo fortemente no ano anterior e que apenas dois casos específicos de uma amostra de 107 casos históricos são condizentes com o caso de sucesso de um ajuste fiscal em momento de desaceleração econômica. Além disso, o próprio Fundo Monetário Internacional (FMI), em relatório oficial, mostra que a ‘contração fiscal é normalmente contracionista’, gera desemprego e queda da renda (FMI, 2010).

Uma política fiscal para os direitos humanos

Para que serve a economia de um país senão para oferecer condições dignas de vida aos seus componentes? Assim, uma política fiscal responsável deve respeitar os direitos humanos, orientar-se para alcançar objetivos sociais e ambientais e, sobretudo, “promover uma estabilidade social, que considere o emprego, a renda e a garantia do conteúdo mínimo dos direitos humanos com realização progressiva”. Assim afirmam Pedro Rossi, Grazielle David e Esther Dweck, no artigo “Redefinindo responsabilidade fiscal”. Eles complementam:

“Não é difícil perceber que todas as medidas adotadas durante a crise da pandemia da Covid-19 dependem de instituições e instrumentos ameaçados pelas reformas estruturais em curso. Mas, ao invés de fortalecê-los, o Governo Federal mostra que pretende aprofundar sua destruição. Em particular, a emenda do Teto de Gastos já afetou o funcionamento da máquina pública e o financiamento de atividades estatais básicas, e esse quadro tende a se agravar nos próximos anos.

Portanto, considerando a redefinição do conceito de responsabilidade fiscal, a política fiscal praticada no Brasil é irresponsável. Nesse sentido, é imprescindível substituir o conjunto de regras fiscais atrasadas, sobrepostas e anacrônicas. Precisamos de instrumentos que permitam uma atuação estabilizadora do ciclo econômico, viabilizem o aumento dos investimentos públicos e garantam a prestação de serviços públicos de qualidade que garantem direitos e as políticas de transferência de renda.”  -  (Fonte: Boletim Carta Maior - Aqui).

* O livro, “Economia pós-pandemia: desmontando os mitos da austeridade fiscal e construindo um novo paradigma econômico”, está disponível gratuitamente nas diversas plataformas de ebooks e em pré-venda, para o livro físico, na editora Autonomia Literária.

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"...Nesse sentido, é imprescindível substituir o conjunto de regras fiscais atrasadas, sobrepostas e anacrônicas. Precisamos de instrumentos que permitam uma atuação estabilizadora do ciclo econômico, viabilizem o aumento dos investimentos públicos e garantam a prestação de serviços públicos de qualidade que garantem direitos e as políticas de transferência de renda."

Sem dúvida. Mas, pelo visto, sem a realização de uma cuidadosa auditoria da dívida pública - que fatalmente determinaria uma drástica redução do famoso "serviço da dívida", que sufoca o País ao abocanhar 50% do Orçamento Público brasileiro -, nada feito. Que fique claro: o famigerado Ajuste Fiscal/Teto de Gastos existe basicamente para garantir a 'solvabilidade' nacional, independentemente de seus efeitos colaterais: os credores querem "o seu", o resto que se dane. E assim, enquanto não se der cumprimento à recomendação contida no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, consistente exatamente na realização de tal auditoria (coisa de que os credores externos e internos querem distância, pois que muita "dívida" é fundada em condições contratuais insustentáveis, ou até mesmo fajutas), o Brasil continuará dominado pelo Livre Mercado e socialmente agonizante. 

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