terça-feira, 14 de janeiro de 2020

SÓ PARA QUEM GOSTA DE CINEMA E OUTRAS ARTES: JEAN-LUC GODARD


"Entre os grandes diretores de cinema do século XX, o franco-suiço Jean-Luc Godard merece destaque. Começou como crítico no Cahiers du cinéma, ainda no tempo de André Bazin, e depois integrou, a partir de 1958, o grupo dos “jovens turcos” da Nouvelle Vague.
O movimento francês foi a primeira vanguarda moderna propriamente cinematográfica, se excetuarmos aquelas dos anos 1920 com raízes na literatura e artes plásticas. No final dos anos 1960, Godard evolui à esquerda do que era inicialmente um movimento com raízes mais à direita do espectro político, buscando inspiração no classicismo hollywoodiano através da chamada “política dos autores”.
Na Nouvelle Vague, Godard compunha com François Truffaut, Éric Rohmer e Jacques Rivette a chamada “rive droite” – em oposição à “rive gauche” de Agnès Varda, Chris Marker, Alain Resnais e outros. Chega na extrema esquerda com a fundação, em 1968, do grupo documentarista “Dziga Vertov”, de corte maoísta. Entre 1968 e 1972, o grupo “Dziga Vertov” produziu filmes com crítica radical às estruturas sociais do capitalismo (como “Luttes en Italie”, “Vladimir et Rosa”, “Le Vent d”Est”, “Letter to Jane”, “British Sounds”), dando sequência a obras anteriores como “La Chinoise”/1967 ou “Weekeend”/1967.
Nos anos 1980 e 1990 Godard voltou-se ao experimentalismo formal, realizando uma série de obras no modo ficcional, usando atores e estrelas, mas desconstruindo a forma narrativa tradicional com trama e personagens. Nestes filmes são percorridos temas diversos como a dimensão da humanidade face a potência divina (“Hélas pour moi”/1993); as cores e luzes da pintura clássica como tema narrativo (“Passion”/1982); o eterno motivo da sedução feminina reciclado e pensado (“Prénom Carmen”/1983); o dogma da virgindade de Maria com seus dilemas atualizados (“Je Vous Salue, Marie”/1985); os horrores da guerra da Bósnia, misturados à Fernando Pessoa (“For Ever Mozart”/1996); Shakespeare, agora em Chernobyl (“King Lear”/1987); o cinema, sua música e suas falas, conforme foi visto pela “nouvelle vague” (“Nouvelle Vague”/1990); a própria história centenária da arte do cinema (“Histore(s) du Cinéma”/1988-98), etc.
Godard continua a todo vapor, mostrando que mantém a verve criativa. É daqueles artistas com obra consistente para além da maturidade – quando envelhecem e, naturalmente, entram na fase mais retrospectiva da vida. Passam então a girar em torno dos grandes formatos e temas em que floresceram. Godard avança bem na velhice, com produtividade notável para seus quase 90 anos (é de 1930).
Na segunda década do século XXI, além de diversos curtas e produções mais caseiras, assinou três longas: “Filme Socialismo”/2010, “Adeus à Linguagem”/2014 e “Imagem e Palavra”/2018. Seu último filme, “Imagem e Palavra”, recebeu uma Palma de Ouro Especial no Festival de Cannes de 2018 e passou recentemente, no primeiro semestre, por alguns poucos cinemas brasileiros.
Seu penúltimo longa, também da década de 2010, “Adeus à Linguagem”/2014, retoma “Duas ou Três Coisas que Sei Dela”, filme de 1966-67. São dois filmes filosóficos, de um cineasta que, em sua filmografia, tencionou o pensamento na imagem-som, torcendo o conceito no formato fílmico-narrativo que transcorre.
“Adeus à Linguagem” tinha trama ficcional mais forte que “Imagem e Palavra” e uma sensibilidade mergulhada de modo mais decidido na filosofia contemporânea, com belas preocupações sobre o estatuto do ser que nos remetem ao pensamento e às sensações que parecem ser ditas por um velho filósofo francês pós-estruturalista da segunda metade do século XX. Além disso, “Adeus à Linguagem” é um filme em 3D, tendo sido exibido no Brasil neste formato. Quem teve a oportunidade de vê-lo no cinema, “comme il faut”, com sua singular beleza plástica, não esquece a dança dos volumes e das cores nas formas godardianas.
“Imagem e Palavra”/2018, no entanto, abandona o “frisson” mais estonteante da metafísica pós-estruturalista para se voltar, no modo de um ensaio documentário, à reflexão sobre o exercício da política e do poder. Está sob o domínio da práxis, podemos assim dizer. Sintoniza a tendência do pragmatismo mais brutal de nosso tempo no qual a escrita, ou ícones mais primitivos como “emojis”, substituem progressivamente as pequenas doses cotidianas de comunhão que tínhamos na comunicação nuançada da fala. São blocos sintagmáticos que, com seus pequenos tijolos obtusos, detonam como pólvora os afetos da ira, da indignação, do ressentimento.
Em “Imagem e Palavra”, Godard traça este cruzamento entre palavras, hoje multiplicadas, e, ao mesmo tempo, ausentes na fala. Dedica-se a refletir sobre as exaltações de nosso tempo em seis fôlegos – na realidade cinco segmentos ensaísticos, claramente indicados, e mais uma ficção final. Em declarações sobre a obra e no filme, Godard nos diz que os cinco segmentos equivalem aos cinco dedos da mão. Sua voz explica, logo na abertura, que “a verdadeira condição do homem é de pensar com suas mãos”, em citação tirada de Denis de Rougemont: “Existem os cinco dedos, os cinco sentidos, as cinco partes do mundo, sim, os cinco dedos da fada. Mas todos juntos, eles compõem a mão e a verdadeira condição do homem é pensar com suas mãos”.
Acompanhando esta fala em “off”, fora de campo, surge, em primeiro plano, a imagem de duas mãos idosas manipulando a película de um filme numa mesa de montagem. O primeiro plano do filme é o de uma mão com o dedo indicador levantado, fotografada com uma sombra forte que a recorta de um fundo negro. Aponta para cima, meio tateando, meio pedindo interrupção e atenção para a expressão. Segue-se letreiro elogiando o silêncio sem fala de Bécassine (personagem clássica de uma história em quadrinhos francesa). Depois, as mãos tateando corpos, e sozinhas, são seguidas da imagem ícone da lâmina cortando os olhos em Um Cão Andaluz/Buñuel, como uma liberação do olhar.
As cinco partes do filme são seguidas de uma sexta, não numerada, que aproveita as cinco anteriores para estender uma tênue trama e um universo ficcional. A linguagem (“a língua não será jamais linguagem” diz o filme remetendo aos dilemas da semiologia estruturalista) de “Imagem e Palavra” é a do ensaio audiovisual, asserindo através de figurações que esboçam um pensamento para, logo depois, naquilo que tenta ser anterior ao pensar, o fazer desaparecer.
O ensaio é uma modalidade fílmica que tem raiz na tradição documentária e hoje conta com produção cinematográfica forte. “Imagem e Palavra” nitidamente se insere neste campo. Como forma, na filosofia e nas ciências humanas, o ensaio já foi tematizado por grandes pensadores de nossa época. Ao desembarcar com intensidade na produção fílmica dos anos 2000, vindo de um momento anterior, a narrativa ensaística trouxe espaço de expressão para grandes diretores como Chris Marker, Agnès Varda, Harun Farocki, Alexandre Kluge, Straub/Huillet, Vérena Paravel/Lucien Castaing-Taylor, Chantal Akerman, Péter Forgács, Pedro Costa e outros.
O caminho das figuras que encontramos em “Imagem e Palavra” é inicialmente o da história do cinema. “Remake” é o título do primeiro segmento. Ele possui como carga imagens/sons já cristalizados, carregados de uma enunciação passada em imagem fílmica. As figuras não constituem propriamente uma “representação” do mundo, nem se delineiam em asserções propositivas. Surgem como constelação de nuvens que se esboça em picos e logo se desfaz. Os picos, no entanto, estão lá e às vezes se elevam como grandes Himalaias, para quem quiser ver.
Para asserir, ou figurar, Godard possui seu cabedal próprio de artista formado na cinefilia francesa que ele, inclusive, ajudou a construir como panteão, desde os tempos de crítico no “Cahiers” nos anos 1950. “Imagem e Palavra” formata uma narrativa que enuncia com este material a linguagem de sua arte, seguindo o cinema naquilo que cristalizou em estilo e autoria na sua história. Certamente não é uma reprodução menor do grande (266 minutos) e épico “Histoire(s) du Cinéma”/1988-98, projeto maior da filmografia godardiana e que pareceu coroar, no final do século XX, sua obra de maturidade.
“Imagem e Palavra” mostra a agilidade, e a memória, que Godard já teve um dia para percorrer como um lince (ou seria uma lebre?) a história dos filmes. Estes, agora em sua velhice, servem como hélice para impulsionar a verve audiovisual que mantém aguda. O propósito parece ser mostrar como a opressão e a desrazão nos fizeram abandonar a simplicidade da vida e sentir novamente atração na exaltação da potência desmedida e bárbara.
No discurso de Godard sente-se o artista em sintonia com os traumas recentes dos atentados na França. Godard sempre foi um artista do político, que pensa em imagens/som e intervêm pela forma filme, através de enunciados direcionados às estruturas institucionais que concentram poder. A construção do som em diversas pistas ocupa aqui destaque.
O filme foi pensado, segundo Godard, para ser exibido em pequenas salas, com caixas de som distribuídas na superfície, em volta da tela, acima e abaixo dela. Música, ruídos e palavras pipocam pelo espaço, com claras alterações que implicam significados em sua construção, principalmente quando as vozes se sobrepõem à narração fora de campo, indo e voltando, se destacando da periferia para o centro da emissão.
O diálogo com a cultura árabe é forte em “Imagem e Palavra” e retorna de modo obsessivo no fluxo fílmico. Talvez o eixo central desse Godard político seja pensar a Europa e suas novas configurações sociais, vistas pelo viés histórico do ódio, da violência e da guerra. Emergem imagens do Islã radical e da bandeira negra do ISIS, em contraposição às cores gritantes, digitalmente estouradas, do sol, do mar, da amizade, da vida pacata e de belas faces árabes com expressões doces.
O mosaico ensaístico de “Imagem e Palavra” é, então, composto por cinco partes que desembocam na breve narração de uma trama, fazendo se passar como um livro. O título em francês de “Imagem e Palavra” é “Le Livre d”Image” com subtítulo “Image et Parole”. Infelizmente, em português, perdeu a parte principal do nome, “O Livro de Imagem”, e trocou “fala”, tradução mais fiel de “parole”, por “palavra”.
O primeiro segmento, intitulado “Remake”, surge logo após as figuras iniciais deste “Livro da Imagem” (e não “das imagens”), que introduzem a questão do pensamento como imagem, pelo tato. “Remake” é composto basicamente por citações fílmicas e possui no título a indicação de uma operação que, por excelência, constitui a arte cinematográfica: o “remake”.
O primeiro capítulo de “Imagem e Palavra” está configurado sobre as construções da repetição fílmica na obra. O segmento tem norte na dialética da repetição, que tudo retorna (re-make), seguindo a evolução do grande espírito na visão hegeliana-marxista da história: o da tragédia e da farsa, do escravo e do senhor. É “remake”, pois estamos retornando ao que já foi imagem, filme de nós, condenados ao retorno pela negação, da qual a dialética não se liberta.
No nosso caso, o retorno é à imagem que já foi imagem e está impressa, literalmente, na película (ou suporte digital) pelo verniz de um estilo. Pensar com as mãos, no modo que o filme se propõe explicitamente, não significa abandonar o pensamento pela expressão corporal, mas pensar na imagem e pela imagem, ou negar aquilo que, no pensamento, se acorrenta à matéria para fazer a entidade subjetiva. Se na história tudo se copia, “remake” é o primeiro dedo dos cinco da mão: é a direção do fluxo imagem que se quer história, mas consegue apenas retornar.
Como grande testemunha de sua força, fica o esforço breve de querer ser paralelo ao conjunto exterior, mas acabar sendo ocupado pelo sentido e pela memória, se esvaindo na “refazenda”. O “Remake”, no livro godardiano da imagem fílmica, é o que se sucede no giro do motor “forward” do grande filme que “Imagem e Palavra” encontra pelas citações neste primeiro segmento: Laurence Olivier/”Hamlet”; Aldrich/”Kiss Me Deadly”; Murnau/”O Último Homem”; Ray/”Johnny Guitar”; Rozier/”Blue Jeans”; Spielberg/”Tubarão”; Franju/”Le Sang des Bêtes”; Rossellini/”Paisá”; Pasolini/”Salô”; Hitchcock/”Vertigo”; Vigo/”Atalante”; Eisentein/”Ivan” e “Nevsky”; e, ele mesmo, Godard,  por “Allemagne 90 Neuf Zero”, “Les Carabiniers”, “Le Petit Soldad”, “Hélas pour Moi”, “Histoire(s) du Cinéma”.
São todas imagens fílmicas que transcorre em cascata neste segmento (e também nos outros), servindo de hélice para o grande “remake” da história que o filme que figurar pelo mundo da política, da brutalidade e do poder. Neles, filmes, “Imagem e Palavra” se aproveita para fazer falar os afetos da compaixão e da crueldade que lhes são inerentes.
E assim compõe a relação entre filme, realidade e o pensamento das mãos. O primeiro dedo da mão, dos cinco que o filme percorre, seria o do pensamento composto pelo tato que toca e assim se faz sentir como imagem, antes que a fala se torne palavra – ou na multiplicação infinita desta “parole” quando tende ao zero, maneira do desdobrar sobre si.
O segundo dedo do pensamento com as mãos (“verdadeira condição humana” segundo Godard, e que a singulariza), forma o segundo segmento de “Imagem e Palavra” intitulado “As Noites de São Petersburgo”. É o segmento da guerra e do horror. Deixamos para trás o discurso do método no ensaio (o “re-make”) e agora estamos no motor da imagem, na figuração da morte e da violência pelo poder através dos séculos.
“Les Soirées de Saint-Petersburg” é o título de livro do diplomata francês Joseph de Maistre, pensador conservador que, como contrarrevolucionário, viveu a Revolução Francesa – para ele expressão do Terror. Godard o cita algumas vezes neste segmento. Descreve a experiência de Maistre na expressão de que a guerra, em seu horror, é divina. Philippe Sollers, em algum ponto, tentou recuperar num ensaio a retórica de Maistre como uma espécie de “Sade blanc”, mas este não é o percurso que faz Godard.
A citação de longos trechos de seu livro em voz “off” é figurada na imagem de “Imagem e Palavra” e mostra atualidade surpreendente na exaltação do exercício da violência: “a guerra é então divina nela mesma pois é uma lei do mundo. Quem pode duvidar que a morte em combate é um grande privilégio e quem poderia achar que as vítimas – julgamento terrível – teriam versado seu sangue em vão? A guerra é divina na glória misteriosa que a cerca e na atração, não menos inexplicável, que exerce sobre nós”. A imagem e os enunciados que seguem têm o horizonte aberrante da brutalidade como referência.
O segmento do horror em “São Petersburgo” também nos remete ao longo inverno do cerco de Leningrado (nome desta cidade no período soviético) pelos nazistas, quando mais de um milhão de civis, e outro tanto de soldados russos e alemães, morreram numa batalha dilacerante da II Guerra Mundial.
As referências/citações cinematográficas continuam a correr no filme, com a imagem do desvairado “Mabuse” de Lang numa corrida de carro infernal; a idealização protofascista dos “Nibelungos” do mesmo Lang; o “Napoleão” de Gance; e, mais ainda, a trágica morte do coelho numa caçada – numa das cenas mais marcantes de “A Regra do Jogo”/Renoir (1939), pré-figuração cinematográfica por excelência da ascensão da barbárie nazista. (...) -  [Para continuar, clique Aqui].


(De Fernão Pessoa Ramos, texto intitulado "Jean-Luc Godard: Imagem e Palavra", publicado no site A Terra é Redonda - Aqui.
Fernão Pessoa Ramos é professor titular do Departamento de Cinema da Unicamp.

"Godard continua a todo vapor, mostrando que mantém a verve criativa. É daqueles artistas com obra consistente para além da maturidade – quando envelhecem e, naturalmente, entram na fase mais retrospectiva da vida. Passam então a girar em torno dos grandes formatos e temas em que floresceram. Godard avança bem na velhice, com produtividade notável para seus quase 90 anos (é de 1930).
Na segunda década do século XXI, além de diversos curtas e produções mais caseiras, assinou três longas: “Filme Socialismo”/2010, “Adeus à Linguagem”/2014 e “Imagem e Palavra”/2018. Seu último filme, “Imagem e Palavra”, recebeu uma Palma de Ouro Especial no Festival de Cannes de 2018 e passou recentemente, no primeiro semestre, por alguns poucos cinemas brasileiro").

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