domingo, 11 de agosto de 2019

HORA DE SOAR O ALARME?


Afinal, não é hora de soar o alarme?

Por Léa Maria Aarão Reis (Na Carta Maior)

Após Trump, Boris Johnson e alguns outros, e aqui no Brasil, Jair Bolsonaro, esta é uma pergunta que se espalha pelas ruas, nos debates e reuniões políticas do país: não está mais do que na hora de, enfim, tocar alto o alarme do caos político que viceja no Brasil? O livro Berlim no tempo de Hitler, do jornalista francês Jean Marabini (coleção A vida Cotidiana), lançado há 30 anos pela Companhia das Letras, está fora de catálogo, mas se encontra acessível (na Estante Virtual). É leitura empolgante de um trabalho um pouco cult cujo autor nos leva, com as óbvias diferenças de época e das circunstâncias geográficas e sociais, a desenhar paralelos entre o comportamento de berlinenses dos anos 30/40 e os eventos – propositais e de velocidade vertiginosa, criados para confundir a população – que vêm sendo produzidos em Brasília. 

Sobre essas memórias que têm vindo à tona novamente, o juiz argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, da Corte Interamericana de Direitos Humanos, observou, em recente entrevista: ''O nazismo é um marco de poder. No Brasil o que há, hoje, é diferente do nazismo, mas as técnicas são antigas. Entre elas, a estigmatização de opositores através da utilização da mídia e do lawfare, com a Justiça Federal criminalizando a oposição como traidora da nação.''

O livro não é mais uma entre as centenas de obras escritas e transformadas em filmes documentários e de ficção produzidas sobre o dia-a-dia, os usos e costumes da população na capital da Alemanha, nos anos trinta. É um pequeno livro original.

Historiador, jornalista e colaborador do jornal Le Monde, Jean Marabini viveu também durante vários anos em Moscou e é o autor de A Rússia durante a Revolução de Outubro e de Mao e seus herdeiros. Ele conta cenas inimagináveis de traições, divisões e rasteiras entre membros dos SS e as tropas de assalto (policiais) da SA, e entre militares da velha geração prussiana e os oficiais mais jovens. Narra a divisão dos primeiros tempos do ''estado-maior fraco'' do exército alemão, a Reichswehr, e entre os personagens mais íntimos do núcleo duro do Führer - hoje, seria denominado 'o mito’?

Marabini conhecia a competição e o oportunismo que grassavam nos círculos dos comandos do poder nazista, obtinha informações privilegiadas e ouvia confidências de diplomatas e colegas seus, jornalistas sediados na cidade desde a ascensão de Hitler eleito chanceler e o fim da Segunda Guerra Mundial com as ruínas da Berlim histórica. 

Viu a desavença e desunião da direita conservadora. Anota: ''Não há mais esquerda centrista, socialista, comunista.'' O velho marechal Hindenburg pressionado por homens importantes, do capital; inclusive pelo grande amigo de Hitler, o banqueiro Schacht.

O cenário do livro são as periferias da cidade se transformando em casernas para instalar militares, as unidades de fábricas que funcionavam dia e noite com o trabalho escravo produzindo armamento e enriquecendo os grupos do grande capital: Krupp, von Thyssen e tantos outros.

Em 1944, as escolas se transformavam em casernas para treinamento das crianças-soldados. ''Os meninos de menos de 12 anos ainda serão poupados; por enquanto,'' diz um comandante de um grupo de tanques panzer

Para os pobres, os miseráveis, os arruinados pela Primeira Grande Guerra, e para os ressentidos, nos primeiros tempos de sedução das massas, Hitler ''aliviava o povo alemão das suas culpas e das suas amarguras exaltando-o e prometendo a desforra contra judeus, padres, democratas, sindicatos, bolcheviques, o mundo inteiro'', entre avanços e recuos em suas decisões, suas crises de depressão, acessos de ódio, sua paranoia alimentando-se de inimigos permanentes. 

Histérico, berrava: ''Alemanha, desperta!'' vestido de redingote preto, ''terno negro de empregadinho em trajos domingueiros'', descreve Marabini. Depois, o fotógrafo Hoffman, espécie de seu marqueteiro, ensinou o gestual apropriado à mis-en-scène dos discursos, e levou Hitler a abandonar a roupa negra que lembrava Carlitos e adotar o uniforme para sempre.

As belas casas da burguesia nos sofisticados condomínios, projetadas por arquitetos do Bauhaus e decoradas com suas obras, persistiram até 1943/44; também as mansões e os castelos dos arredores de Berlim onde vivia e conspirava a velha elite prussiana vagando entre preciosas obras de arte e tapeçarias da Idade Média. Os filhos, cultos e finos, estudavam nos lycés franceses berlinenses.

Berlim era também pano de fundo, na contramão da trepidação e entusiasmo e do apoio de civis e militares ao ex-cabo Hitler, do sentimento de medo da classe média recém derrotada pela guerra de 14, o ressentimento, as ações e reações dos trabalhadores e da burguesia de Berlim, cidade cosmopolita e sofisticada com dois milhões de habitantes quando Hitler surgiu nos cafés da Kufursterdamn vindo das ''esfumaçadas cervejarias de Munique'' –, registra o livro -, onde doutrinava as pequenas plateias meio bêbadas e fascinadas com suas idéias.

Outro premiado jornalista, o britânico Gideon Rachman, especialista em relações Internacionais do Financial Times, recordou também, recentemente, a demora da população em notar o avanço do nazismo, ''até ser tarde demais'', diz ele, ao comentar, há poucas semanas, outro livro (póstumo) sobre o mesmo tema, do alemão Sebastian Haffner. A leitura de Defying Hitler voltou à moda na Londres de hoje.

No excelente livro de Marabini é narrado como os nazistas, naquela época, avançavam e recuavam para testar apoio político, numa ''valsa de hesitação'', enquanto se entre-devoravam nos bastidores do governo. Goering, von Ribbentrop, o almirante Canaris, Von Papen. 

Como já começaram a se digladiar publicamente a caterva daqui: deputados, ministros, movimentos financiados por milionários americanos, secretários, assessores, aspones. Um tiroteio de todos contra todos dentro de uma sala escura.

Essas visões contemporâneas que acompanham a ascensão dos nazistas ao poder, no passado, são tão perturbadoras como seguir o desenrolar do comportamento de novos políticos com viés autoritário e claros sinais ditatoriais que vão ganhando o poder.

Elas podem ensinar que o ceticismo, o desprezo pela violenta vulgaridade dos mitos, dos líderes, dos chefes e dos heróis, e as dúvidas entre o que seja realmente perigoso ou apenas desagradável, a chacota, as caricaturas e piadas, o silêncio, a omissão e a conformidade são sentimentos que podem levar os populistas de hoje a comandar novas catástrofes como a do nazifascismo.

''Até onde isto pode nos levar'' não é uma boa receita. As instituições alemãs e seu sistema de freios e contrapesos ainda estavam funcionando normalmente, dizia-se na época do avanço do nazismo. É a cômoda ilusão que vemos, no livro de Marabini.  -  (Carta Maior  -  Aqui).

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