quinta-feira, 20 de junho de 2019

A FINA CASCA QUE PROTEGE A CIVILIZAÇÃO NO FILME 'CLIMAX'

(GGN)
A fina casca que protege a civilização no filme "Climax" 
Por Wilson Ferreira (No Cinegnose) 
Mais um filme para cinéfilos aventureiros e destemidos. Os filmes do diretor argentino Gaspar Noé são disruptivos: ou você ama ou odeia. Tal como “Irreversível” ou “Enter The Void”, o filme “Climax” (2018) nos apresenta um verdadeiro assalto à nossa percepção através de imagens alucinatórias, música techno implacável, pesada, e movimentos de câmera vertiginosos, tomando nossos sentidos e embaralhando o cérebro. Confronta-nos com uma experiência imersiva na qual acompanhamos uma trupe de dança após audição preparatória para uma turnê na América. Depois, todos comemoram com uma festa na qual, repentinamente, as coisas começam fugir do controle. E de maneiras cada vez mais perturbadoras - prazer e morte se confundirão, transformando o jogo artístico, de instrumento civilizatório, em bomba de autodestruição. Gaspar Noé quer nos mostrar que apenas uma fina casca protege a civilização de si mesma.

Freud acreditava que o psiquismo humano era marcado pela indissociabilidade entre as pulsões de vida e de morte. Tanto as angústias sobre a vida e a morte são as experiências mais significantes no nosso desenvolvimento psíquico.
Enquanto, para Freud, a pulsão de vida é a tendência de formação de unidades maiores, aproximação e unificação entre seres vivos (da criação artística à própria sociedade), a pulsão de morte, ao contrário, é a tendência para a destruição e o retorno ao estado inorgânico.
A capacidade humana da sublimação seria a forma de lidar com essas pulsões, e a criação artística como um dos seus instrumentos e domínios – graças à ilusão artística produz-se uma satisfação dos desejos através de um jogo, como fosse algo real. 
Colocados esses conceitos freudianos, formulados lá era vitoriana da passagem de século XIX-XX, como ficaria essa ilusão artística numa sociedade que busca formas de satisfação do desejo cada vez mais intensas, ansiosas, viscerais, excitadas ao extremo pela indústria do consumo e entretenimento? 

                  Delírio, adrenalina, alucinação, arrepio, agito, tudo em flash. É o paradigma atual da satisfação dos desejos, a tal ponto que para muitos estudiosos como o filósofo francês Michel Lacroix, o prazer começa a se aproximar perigosamente da morte – leia LACROIX, Michel, O Culto da Emoção, José Olympio, 2006.


Hiperexcitação

O filme Climax (2018), mais uma provocante produção de Gaspar Noé (Irreversível Enter The Void), expõe esse tema do destino dos nossos desejos e da própria arte como instrumento civilizatório. Enfraquecido pela atual cultura da hiperexcitação, na qual para nos sentirmos vivos temos que nos aproximar da sensação de quase morrer.
E Noé nos apresenta um verdadeiro assalto à nossa percepção através de imagens alucinatórias, muitas vezes horríveis, música techno implacável, pesada, e movimentos de câmera vertiginosos, tomando nossos sentidos e embaralhando o cérebro.
Climax produz uma experiência imersiva, mergulhando o espectador no frenesi alimentado por drogas que estamos testemunhando: um grupo de dançarinos, depois de uma audição comandado por uma coreógrafa que pretende montar um espetáculo para uma turnê na América, comemora com uma festa em que todos fugirão do controle. E de maneiras cada vez mais perturbadoras.
Dançarinos que têm a dança e arte como um meio no qual expressão e liberação se confundem com a excitação aos limites físicos e psíquicos. Involuntariamente, esses artistas serão empurrados aos limites de si mesmos: alguém (proposital ou involuntariamente) colocou LSD na sangria consumida por todos. 

                  Resultado: prazer e morte se confundirão, transformando o jogo artístico de instrumento civilizatório em bomba de autodestruição.


O Filme

“A morte é uma experiência extraordinária”, “Esse é um filme francês com muito orgulho”, declara alguns letterings que repentinamente pontuam a narrativa. A própria montagem do filme, desde o início, é pensada para causar estranhamento: os créditos finais vêm no início e os créditos de abertura surgem, do nada, no meio da narrativa.
Acompanhamos uma trupe de dança em um centro comunitário às vésperas da turnê americana. São artistas talentosos, um grupo multicultural diversificado que, observamos, são fora do comum.
A primeira sequência de dança é um caos exuberante, sob uma música house pulsante e pesada que chapa nossos sentidos. Um após outro vem para frente para exibir sua especialidade: vogue, contorção, krumping etc. É um espetáculo aparentemente caótico, mas contido para que cada artista possa brilhar.
Antes dessa sequência, através de uma velha televisão em cores (a história se passa em 1996), assistimos aos trechos das entrevistas na audição que os levou àquela noite fatídica. O aparelho é flanqueado por pilhas de VHS que oferecem pistas para o que está por vir: Suspiria (o original de Dario Argento), Querelle (o clássico filme homo afetivo de Fassbinder) e Possession, filmes com os quais Climax parece querer dialogar.
Todos falam sobre os motivos que os levaram à dança: motivos nobres, auto elogiosos, autoindulgentes.
                  Mas depois, relaxadas na festa, após a audição e ensaio, revelam o “demasiado humano”: fofocam, brigam e brincam. Os homens se gabam do sexo que tiveram ou que terão naquela trupe. Também as mulheres fazem isso, mas de maneira menos explícita. Vemos um grupo, além de multicultural, com múltiplas orientações de gênero.


Na festa vemos um DJ pilotando suas pick-ups e uma mesa repleta de lanches e ponche de sangria... mas alguém (deliberadamente?) colocou LSD.
Aos poucos a atmosfera começa a ficar pesada com uma cenografia com corredores, portas, banhadas com lúgubre iluminação em vermelho e verde. Noé põe a sua assinatura: a câmera gira entre todos, flutua ou rasteja no chão em longos planos-sequência, às vezes girando de ponta-cabeça.
Logo todos percebem que algum tipo de ácido foi colocado na bebida. Surge a paranoia, para depois dar lugar ao horror e a fúria. A partir desse ponto há uma estranha mistura entre O Senhor das Moscas e Agatha Christie – o grupo se transforma em vigilantes, para começar xenófobos: põem a culpa em um muçulmano que é agredido e jogado na nevasca que faz lá fora.

Mundo solipsista

                  À medida em que o horror e alucinações aumentam, os dançarinos se espalham pelo prédio, com experiências grotescas e vislumbres de coisas horríveis acontecendo em salas adjacentes. Ninguém mais quer saber quem jogou LSD na sangria – cada um se entrega ao seu próprio mundo solipsista, dançando e se contorcendo solitariamente, na qual a presença do outro incita violência, ciúmes, ameaça ou, apenas, representa um objeto para realização dos próprios impulsos alucinatórios.


Racismo, xenofobia, machismo, misoginia, intolerância, ciúmes, inveja, enfim, todas as representações destrutivas da pulsão de morte tomam conta mostrando que a arte, assim como a civilização, é fina casca que impede a barbárie.
É claro que, ao lado dessa interpretação freudiana, há a pós-moderna a partir das considerações do filósofo Lacroix: aquele LSD fez apenas revelar o que estava oculto nas entrevistas registradas nas fitas VHS do começo. Os depoimentos foram apenas álibis que escondem uma arte dominada pela cultura do hiperexcitação, na qual as pessoas caçam fortes emoções constantemente.
E essas fortes emoções não têm mais o espírito coletivo, como demonstrado na primeira sequência de dança – agora assume um tom solipsista, narcísico, artificial e egocêntrico. Até destruir o outro e se autodestruir.
Climax mais uma vez revela o tema recorrente na obra de Gaspar Noé: a vitória de Thanatos (a morte) sobre Eros (vida), patrocinada pela própria civilização.

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