sábado, 23 de março de 2019

TEMPOS DIFÍCEIS E QUENTES, OU: É PRECISO FALAR SOBRE DIREITO E MORAL

A palavra certeira do arguto professor de Direito Constitucional, jurista e pós-doutor em Direito Lenio Streck, num momento para lá de nebuloso na história deste País.
(Colagem).
Ideologizar o Direito dá nisso: aplicar o óbvio da lei vira absurdo
Por Lenio Luiz Streck (Na Conjur)
Dois assuntos: o Fla-Flu do Direito e o dia em que o estagiário transferiu uma audiência (minha versão)!
A discussão do julgamento do Supremo Tribunal Federal no Inquérito 4.435 acerca da competência da Justiça Eleitoral desnudou, de novo, a prevalência dos discursos morais-teleológicos-consequencialistas sobre o Direito escrito-legislado-constitucionalizado. Teve de tudo: “O julgamento do STF acabou com a Lava Jato!”, “Fechem o STF!”, e outras adjetivações impublicáveis – todas elas na linha da Tese “Um Cabo e um Soldado” (“não precisa nem de um jeep”, não é?) Teve até quem replicasse post com ameaças de apedrejamento da Suprema Corte. Tempos difíceis e quentes.
Jornalistas e jornaleiros, advogados e adevogados, juristas e cobradores de juros abriram as baterias. Se a decisão fosse 6x5 em outra direção, essas mesmas pessoas diriam: “O STF mais uma vez acertou!” Pois é. Fla-Flu jurídico. Precisamos, mesmo, falar sobre Direito e Moral.
Dentre os 6 votos que compuseram a maioria, duas partes do voto de Celso de Mello explicam e deixam claro o imbróglio. Os grifos são meus:
É, portanto, na Constituição e nas leis — e não na busca pragmática de resultados, independentemente da adequação dos meios à disciplina imposta pela ordem jurídica — que se deverá promover a solução do justo equilíbrio entre as relações de tensão que emergem do estado de permanente conflito entre o princípio da autoridade e o valor da liberdade.
A citação acima coloca a questão no plano do Constitucionalismo Contemporâneo. Já a citação seguinte passa uma régua técnica na questão:
É por essa razão que — em interpretação sistemática do artigo 35, II, do Código Eleitoral e do artigo 78, IV, do CPP — no concurso entre a jurisdição penal comum e a especial (como a eleitoral), prevalecerá esta na hipótese de conexão entre um delito eleitoral e uma infração penal comum (...).
Tudo muito simples. Ou não, se você politizar. Para superar a clara dicção e a tradição do conceito de conexão seria necessária uma alteração legislativa. Argumentos consequencialistas (sem empiria, diga-se) não podem derrubar leis. Seria como admitir que um pamprincípio como o da “afetividade” valha mais do que um dispositivo do Código Civil, para usar um dos flertes dos juristas para com a primazia da moral sobre o Direito. Como se um argumento retórico ad hoc tirado do bolso valesse mais que o estatuto epistemológico, para usar o termo de Otávio Luiz Rodrigues Jr., autêntico e tradicional, de um mesmo ramo específico do Direito.
Tudo isso ocorre porque nos acostumamos a colocar argumentos morais, políticos e econômicos acima da lei e da Constituição. Professores em sala de aula são useiros e vezeiros nisso. E os livros de Direito são glosadores de decisões tribunalícias ad hoc. Resultado: uma algaravia. Ganha quem tiver mais poder. E o Direito, que foi feito para controlar o poder, transforma-se em mero instrumento... do poder.
Darcy Ribeiro disse, certa vez, que Deus é tão treteiro, faz as coisas tão recônditas e sofisticadas, que ainda necessitamos dessa classe de gente, os cientistas, para desvelar as obviedades do óbvio. Parafraseio, pois, o grande antropólogo: ainda precisamos de uma certa classe de juristas para dizerem o óbvio, para dizerem até mesmo platitudes; platitudes como a de que, em uma democracia, argumentos consequencialistas (morais, etc.) não devem valer mais do que aquilo que justamente foi feito para resolver os nossos disagreements: o Direito. Só se resolve o emotivismo a partir de um critério; pois é: emotivizaram o critério.
Simples assim. O resto é Fla-Flu, Grenal e quejandos.
Ainda sobre issoO humor que destrói. Que banaliza.
Precisamos falar sobre Direito e moral. Precisamos falar sobre uma Teoria do Direito que vira Teoria Política do Poder. E precisamos falar sobre o papel da (des)informação midiática.
Ideologização do Direito. Instrumentalização do jurídico. Emotivismo, consequencialismo, retórica ad hoc. Tudo isso presta um serviço ao fascismo.
Por isso tudo: por ideologizar o Direito, instrumentalizar o jurídico, por adotar a retórica emotivista-consequencialista, a Globo, através de seus atores, prestou um serviço ao fascismo. Vejam aqui como é fácil reproduzir as tão velhas quanto falaciosas relações feitas pela mídia entre a legislação penal e a impunidade; relações que a Globo reforça. Uma parte do vídeo diz:
Só Código Processual Penal associado a muito dinheiro e bons advogados traz aquela sensação de impunidade. Graças ao Código posso levar uma vida de crimes, sem restrição. Obrigado doutores”.
E a cena mostra o personagem, saindo da cadeia, abraçando seus advogados. Bom, veja e ouçam. Tem ainda a parte final...! Acessem. O título do vídeo poderia ser Kill all the lawyers, imitando Jack, o açougueiro, de Henry VI. Patéticos.
Trata-se de uma criminalização simbólica da advocacia. E uma tentativa de criminalização que é tão covarde quanto carente de valor epistêmico. “Há muitos crimes”, dizem; “logo, a culpa é da lei penal”. É mesmo? Quem disse? E por quê? Qual é o argumento lógico que liga o ser ao dever ser nesse caso?
Sigo. Aqui o paradoxo é duplo: aceitam instrumentalizar o Direito em favor do poder, paradoxo um, através do paradoxo dois: utilizar-se do humorcomo instrumento do poder.
Pois é: não adianta querer ser Monty Python fazendo o papel de bobo da corte a serviço do rei. Que feio.
Post scriptum 1: Tomada do Poder: E o estagiário foi fazer provas e o fórum parou!
Conjur já me antecipou (aqui). Jabuti não sobe em árvore e ninguém é filho de chocadeira. Por que eu já não me surpreendo? Por que estou estocando mais alimentos? O Direito brasileiro está assim por causa de um “imenso esforço” que se faz. O que dizer de uma audiência criminal, em Fortaleza, que não foi realizada por causa da ausência do estagiário que estava em provas na Faculdade? E o próprio estagiário certifica. Inacreditável: o próprio estagiário certificou!
Quer dizer: a prestação jurisdicional depende da presença do estagiário... Eu sabia que a nobre classe estagiária ainda tomaria o poder. Faltava só organização. Aqui está. Ah: o processo criminal transferido tratava de “outras fraudes”!
Um cheiro de improbidade ronda o Direito de Pindorama. Um pouco aqui, um pouco ali. E temos os ingredientes do caos.
Para lembrar meu lado pitonisa: em 2012 escrevi uma coluna intitulada a Tomada do Poder pelos Estagiários. Eu sabia!
Post scriptum 2: por falar em improbidade e coisas do gênero, recomendo a coluna hebdomadária de Rodrigo Mudrovitsch, todas as sextas-feiras. Aprenderemos muito. A primeira já mostrou isso (aqui). Amanhã terá mais.
Post scriptum 3: Lançamentos! Para quem é do Rio de Janeiro ou lá estiver nos dias 27 e 28 (quarta e quinta), advogados, professores e profissionais da área lançam dois livros em minha homenagem. Dia 27, 18 horas, na Emerj (ver aqui); dia 28, quinta, 18 horas, na Avenida Mem de Sá, 126, Lapa (ver aqui). No dia 27, na Emerj, darei uma canja, em breve mesa redonda.

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De Fábio de Oliveira Ribeiro:
"O processo é uma guerra civil ressignificada. Domesticada pelo rito, a violência pode ser assim dissipada por uma decisão que deverá ser necessariamente aceita por ambas as partes.
Mas quanto o juiz é parte, a guerra processual tem tudo para se transformar em guerra civil propriamente dita.
Vem daí a necessidade do juiz se afastara da moral. Quando moraliza sua atuação, ele se transforma em parte. Suspeito para julgar, quando não profere uma sentença nula a nulidade inevitavelmente questionada por quem foi prejudicado.
O prejuízo que o juiz causa à parte pode ser reparado. Mas o que ele causa à sociedade pode ser irreparável.
Pouca gente se lembra que a Guerra de Canudos começou porque um juiz requisitou o envio de tropas à capital para lidar com o que ele considerou um problema que não poderia ser de outra forma domesticado.
Acionado o gatilho judicial da guerra, a carnificina rapidamente se tornou uma realidade. O juiz saiu de cena quando os soldados entraram no campo de batalha, mas nem por isso as mãos dele deixaram de ficar sujas de sangue.
Isso deveria ser ensinado aos juízes nas escolas de magistratura. Mas agora que eles treinam tiro ao alvo na PF e se comportam como se tivessem saído da Escola Superior de Guerra nada mais pode ser feito por eles, nem por nós."
(Há outros comentários interessantes aqui, e na fonte original - ConJur -, mais ainda).

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