quarta-feira, 13 de junho de 2018

SOBRE UMA ANÁLISE CRÍTICA DE MACHADO DE ASSIS


A visão limitada da crítica Parul Seghal sobre Machado de Assis

Por Gilberto Cruvinel

Publicado nos Estados Unidos neste mês de junho, o volume The Collected Stories of Machado de Assis traduzido por Margaret Jull Costa e Robin Patterson reúne 76 contos selecionados entre os mais de 200 que o escritor carioca produziu. Um lançamento importante para o leitor americano que só teve acesso até esta data aos três romances mais conhecidos do escritor, Memórias Póstumas de Brás CubasQuincas Borba e Dom Casmurro. A tradução do artigo da crítica literária Parul Sehgal no The New York Times  que registrou este lançamento é publicada com exclusividade hoje no GGN. Desde julho de 2017, Sehgal é a chefe da equipe de críticos do Times que diariamente faz a resenha de um livro.

Sehgal incorre, ao falar do escritor brasileiro, na mesma visão parcial dos três homens cegos da parábola hindu por ela citada que apalpam um elefante para saber com o que ele se parece. Cobra, leque e tronco de árvore, nenhum dos homens logra entender a que um elefante se assemelha.

A crítica do Times escorrega na velha armadilha e muito conhecida da crítica machadiana quando afirma que o Brasil está ausente das histórias do Bruxo:  “Há poucos marcos, poucas menções ao tempo”. Machado que lia muito e sobretudo o que vinha da Europa faria muitas alusões a Molière e Goethe que comparecem mais que o Brasil. Nada mais ilusório. Pode-se recorrer ao próprio autor do célebre artigo Instinto de Nacionalidade, quando diz que
“O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.” (Machado de Assis, O Instinto de Nacionalidade)
Mesmo quando apela a Molière e a Goethe, quando coloca Bentinho no teatro assistindo ao Othelo de Shakespeare ou ainda quando faz pelo menos duas dezenas de citações de Dante e traduz para o português o canto XXV do “Inferno” da Divina Comédia, Machado está, alegoricamente, falando do Brasil, de seu povo e de sua elite no século XIX.
Mas Sehgal vai adiante e afirma que “uma das prolongadas frustrações com a obra de Machado” é “sua recusa em escrever mais explicitamente sobre a escravidão.” Novamente, a crítica apalpou um elefante e só conseguiu distinguir um rato. John Gledson, um estudioso inglês apaixonado pelo escritor carioca, escreveu um livro inteiro, Machado de Assis - Ficção e História, para demonstrar, e o fez com brilho, como a ficção de Machado está intimamente ligada à história do Brasil do século XIX. Mas vamos primeiro recorrer aos dois críticos brasileiros que melhor interpretaram a obra do Bruxo. Dois trabalhos da crítica, A Pirâmide e o Trapézio, de Raymundo Faoro, e Ao Vencedor as Batatas, de Roberto Shwarz, nos  mostraram que
“Machado não apenas refletia a sociedade e a política brasileiras de uma forma passiva ou meramente documentária, mas também refletia sobre elas.” (John Gledson, Machado de Assis - Ficção e História).
Shwarz identificou a preocupação de Machado com o fenômeno do favor, o tema central de Ao Vencedor as Batatas (inspirado em parte em importante artigo de Antônio Cândido sobre Memórias de Um Sargento de Milícias) e que essa preocupação não era acidental ou reflexo da experiência pessoal de Machado, mas “estava voltada para aspectos difusos de uma sociedade brasileira moldada pela instituição da escravidão”.
E então fechamos este comentário que já vai mais longo que o recomendável, não sem antes resgatar a observação certeira e afiada do grande John Gledson sobre o Bruxo do Cosme Velho. Em 1871, houve uma tentativa de reformar o sistema social injusto, desumano e ultrapassado que vigorava no Brasil. Uma tentativa que resultou em fracasso e produziu apenas a Lei do Ventre Livre, que só saiu por medo de uma revolta dos escravos, por pressão abolicionista e pressão estrangeira. Gledson então faz a refinada conexão com a obra machadiana:
“as causas e os resultados desses fracassos estão presentes em todos os romances da maturidade de Machado, constituindo uma lição de História do Brasil. Um rígido sistema de classes, baseado na escravidão, que produz uma classe dominante incestuosa, incapaz de renovação procedente dos escalões inferiores (ver, especialmente, Brás Cubas, Casa Velha e Dom Casmurro)  e um capitalismo superficial, explorador, com raízes no exterior, incapaz de beneficiar a nação em conjunto, em parte porque esse 'conjunto' é uma ficção (ver, especialmente, Quincas Borba, Esaú e Jacó, Memorial de Aires). Esses são dois aspectos menos encorajadores e, claro, interdependentes da visão que Machado tinha da História do Brasil."  (John Gledson, Machado de Assis – Ficção e História).
Alguma semelhança entre o Brasil da segunda metade do século XIX e o Brasil da segunda década do século XXI ?
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Machado, o Bruxo do Cosme Velho, também expôs a escravidão em várias crônicas publicadas em jornais. Um escritor em essência.

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