quarta-feira, 1 de novembro de 2017

A CAÇADA AO TEMPO PERDIDO


A caçada ao tempo perdido

Por Martim Vasques

Para Osman Lins, ser um escritor num mundo em que a opressão às atividades do Espírito é constante torna-se uma forma de resistência que exige do sujeito, antes de tudo, uma determinação moral. Em seu ensaio "Guerra Sem Testemunhas", em que medita sobre a relação do escritor com a sociedade, Lins explicita este conflito de interesses num estilo marcante:
"Vive o homem, como um personagem alegórico, entre a Ambição e o Medo. Teme ofender aos poderosos, de quem depende e que podem, com sua cólera, ou apenas com seu desinteresse, dificultar-lhe a existência; ambiciona possuir riquezas, único bem indiscutível e reconhecido por todos. O temor desnatura o que em si há de virgem, fazendo com que os seus atos deixem de exprimir impulsos e convicções; o protesto converte-se em blandícia, as afirmativas são sempre cautelosas e tudo o que diz tem seu endereço: palavras doces para os amantes do mel, amargas para os que preferem o vinagre e o fel. Atrela-o a ambição ao que detesta. Aos poucos abandona o que pode liberá-lo, conquista bens que o sufocam. Muitos, acreditando comprar a liberdade de espírito, ou afetando ser este o seu objetivo, empenham a juventude, a maturidade, na obtenção do que se costuma chamar uma situação estável, para entregarem-se - depois, mais tarde, um dia - sem cuidados, a ocupações realmente humanas. Assemelham-se a um barco, longo tempo ancorado, muitos anos, à espera dos tripulantes, para fazer-se ao mar. Os tripulantes e o dono só virão quando não mais tiverem cuidado algum em terra, de modo a poderem improvisar suas rotas, partir tranqüilos, viajar sem quaisquer apreensões. Mas o barco está morto, apodreceu, não irá jamais a parte alguma. Se as letras nos parecem vivas, como ao homem que empreende este escrito, e se aspiramos, como lhe sucedeu, à sua convivência, temos de aprender a ignorar, bem cedo, no verdor da juventude, a ambição de fortuna e o receio de ferir os ouvidos sensíveis com as dissonâncias de nossa voz. Alheios ao êxito em qualquer outra esfera, acionaremos pouco a pouco as nossas virtualidades, cada vez mais amestradas, empenhando-as numa obra que, sem renegar as heranças recebidas, também não decalque nenhum de seus modelos, opondo-se a todos, assim como haveremos de opor, a tudo que nos cerca, a impertinência do nosso próprio ser. Recearemos, apenas, o arrefecimento de nossa decisão ante as forças que, na juventude, mal advinhamos - e que, como nas fábulas de provação, onde o viajante é solicitado por acontecimentos e aparições que confluem para desviá-lo, virão uma após outra" (Guerra sem Testemunhas, pág. 25)
O escritor é um guerreiro e não há ninguém ao seu lado, exceto a sua própria alma e a sua virtude moral. Mas, na verdade, esta não é a condição de qualquer um que queira atravessar este mundo com alguma dignidade? Esta talvez seja a questão que Osman Lins se propõe a meditar no seu primeiro grande romance, "O Fiel e a Pedra" (1961). Depois de ter lançado a novela "O Visitante" (1955) e o livro de contos "Os Gestos" (1957), Lins finalmente descobriu o eixo temático de sua obra: a luta do indivíduo contra um meio que tenta aniquilá-lo a qualquer custo...
Ora, se Osman Lins é um caçador, devemos saber o que ele está caçando pois, como sabemos, não se pode caçar o nada. Temos de caçar alguma coisa. E sua caçada pode estar fadada ao fracasso, uma vez que o animal que persegue não é algo que se toca com facilidade; ele devora a todos com muita calma, mas também pode dar a chance de fazermos o justo em nossas vidas; sua presença não é sentida, mas todos sabem que está lá. É desnecessário dizer o que Osman Lins procura na sua literatura: nada mais, nada menos que o Tempo e, por isso, sua obra é o terceiro degrau na ascensão da literatura brasileira...  -  (Fonte: AQUI).
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Martim Vasques da Cunha é escritor e jornalista.

Osman Lins (1928-1978), pernambucano de Vitória de Santo Antão. Contista, romancista, teatrólogo, crítico de arte, professor. Obras antológicas: Lisbela e o Prisioneiro (1961); Avalovara (1973). [Mais: aqui].

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