sábado, 16 de novembro de 2019

PALAVRA NOVINHA NASCE ASSIM


"Hoje, ao abrir os jornais, percebo que o inverno se foi. O espelho, não. Esse espelho quebrado permanecerá em minhas mãos, movimentado e cheio de busca por um lugar, um estado, um enfeite para o próximo inverno. Um enfeite significa: outras palavras. Com aquele espelho que sempre cai na rua e o corpo indo de um lado a outro da geografia.
Ouvi dizer que todos esses movimentos absurdamente irregulares são apenas a própria pulsão. Seria como ver o próprio espelho correndo demais, fatigado pelas ruas. Sem pretender dizer que somos um rio sem freio, por favor. Somos apenas sordidamente humanos com um espelho nas mãos. Depois, quebra tudo e já sabemos. Refazer, recriar, recomeçar como se nunca tivesse tido um arranhão. Palavra novinha nasce assim, a gente finge que o inverno passado nunca existiu. Só finge, porque saber é outra coisa. E para escrever é sempre necessário fingir mais, um pouco mais, e mentir muito.
A gente finge que o inverno passado nunca existiu. Ah, tenho pavor de ser passado. Ouvi dizer que a noção comum do tempo nunca existiu no trabalho da escrita. A assumida perda da linearidade da palavra virou até manchete de jornal. Parece que sempre foi atitude comum fingir que o inverno passado nunca existiu, e que toda estação sempre pode nascer em outra.
A contemporaneidade não permite essa falácia, a de se ficar abraçado demais com aquele tempo-meio-morto. Aliás, sim, mas sem excessos. Existe uma medida. Qual? Necessito apenas o quase impossível instante de um segundo. E isso talvez seja uma mentira ou um fingimento também. Ou apenas essa necessidade da formulação de uma frase onde caiba o eu, o mundo exterior, e isso que está entre os dois e é quase insondável. Como falar do instante pode ser apenas mera intertextualidade e um passo a outro-tempo. Qual tempo?"


(De Maíra Vasconcelos, texto intitulado "Palavra novinha nasce assim, a gente finge que o inverno passado nunca existiu", publicado no GGN - Aqui.

"A contemporaneidade não permite essa falácia, a de se ficar abraçado demais com aquele tempo-meio-morto." É isso).

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