sábado, 21 de abril de 2018

QUANDO A AL JAZIRA ESTOUROU NA AUDIÊNCIA

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A senadora gaúcha Ana Amélia, no afã de esgrimir uma crítica à sua colega Gleisi Hoffmann, representante do Paraná, que dirigira apelo sobre o ex-presidente Lula mediante entrevistas a diversas emissoras mundiais, disse esperar que o depoimento (de teor idêntico ao oferecido às demais) de Gleisi à TV Al Jazira não significasse um pedido de socorro à famigerada organização  Estado Islâmico! (O ponto de exclamação fala por si). Ao didático post.


Com destaque a setores sub-representados, cobertura da Al Jazira tem perfil multicultural

Por Carlos Coimbra

“Al Jazira” ou “Al Jazeera Media Network” é uma rede jornalística do Catar (ou Qatar), país árabe com cerca de 2 milhões de habitantes e cuja capital é Doha. Um pequenino emirado que é uma mini península dentro da gigantesca península arábica. Não por acaso, a palavra árabe الجزيرة, símbolo da rede midiática e cuja transliteração para o português é Al-Djazīra, significa “A Ilha” ou “A Península”.

Al Jazira é não só a maior rede jornalística do Catar, como também de todo o mundo árabe. Iniciou suas atividades em 1996, tornando-se famosa globalmente a partir de sua cobertura à Guerra do Afeganistão (2001) e à Guerra do Iraque (2003). Quem não lembra das célebres chamadas da Globo no formato “a rede Al Jazira divulga vídeo em que Bin Laden etc”?

(Um pequeno parênteses. Este autor confessa que anos atrás, quando ainda era jovenzinho, tinha um certo preconceito contra tal rede jornalística, principalmente na época da Guerra do Afeganistão, quando era a única a conseguir imagens de reuniões da Al Qaeda com Bin Laden nas cavernas do Indocuche. Da forma como a Rede Globo e a CNN divulgavam os vídeos, realmente parecia, para um brasileiro que assistia os acontecimentos de longe, que a Al Jazira era uma espécie de braço midiático da Al Qaeda. Os responsáveis pela origem dessa má impressão são as próprias redes jornalísticas ocidentais, que não conseguem desvincular, muitas vezes de propósito, a cultura do oriente médio da imagem de grupos terroristas do mundo islâmico. Fecha-se o parênteses.)
No início de sua abordagem midiática, muito se discutiu se a Al Jazira tinha de fato uma visão independente. Como uma rede árabe, com sede em um emirado absolutista, seria independente?
Não há como dizer com total certeza que é uma rede independente, mas demonstra, por suas reportagens, que possui muito mais autonomia do que muitas das redes midiáticas ocidentais. Tem programação inovadora, pois seus protagonistas, ao contrário de suas concorrentes do ocidente, são muitos daqueles sub-representados pelos grandes meios de comunicação dos Estados Unidos e Europa.
Um exemplo notável: a sua cobertura recente sobre o vergonhoso expurgo dos Rohingya em Myanmar (Birmânia). Myanmar tem maioria budista e desde o ano passado o seu governo está expulsando meticulosamente a minoria étnica denominada Rohingya, em grande parte muçulmanos. Um êxodo cruel em que milhares de famílias inteiras (700 mil indivíduos) deixam o país a pé em busca de refúgio no país vizinho, Bangladesh. Fotos históricas e documentários sobre o ocorrido foram feitos às dezenas pela Al Jazira. Veja um exemplo aqui.
Em outra matéria, mais recente, a rede aborda o problema milenar da chamada “circuncisão feminina”, indevidamente chamada assim. Esse tipo de prática ocorre principalmente nos continentes africano e asiático: a mutilação genital feminina de adolescentes, com remoção do clítoris, como uma espécie de ritual de passagem. A reportagem, um documentário para dizer a verdade, nos leva até a Somália, país onde a prática é legalizada. Vários fatos são abordados, e em particular a Al Jazira nos conta a notável história de Nice Nailantei Lengete, uma ativista queniana que convenceu sua comunidade (que é uma tribo de pastores) a acabar com a prática. Veja o web documentário aqui (em inglês).
Em se tratando de Brasil, no exterior pouco se fala dos problemas reais do país. Reportagens um pouco menos rasas são feitas aqui ou acolá pelo El País, pelo Le Monde, pelo New York Times, pelo The Guardian ou pela BBC. No entanto, os correspondentes mostram-se algumas vezes tímidos em aprofundar questões sociais, poucas vezes abordando o âmago dos problemas mais críticos.
No contraponto, é surpreendente ver a qualidade e a profundidade do trabalho da Al Jazira em suas reportagens sobre o Brasil. Um exemplo claro foi a reportagem “As bailarinas da favela”, em que a rede do Catar conta a história de Tuany Nascimento, moradora do Complexo do Alemão que dá aulas de balé a crianças da comunidade. A reportagem não é só um recorte turístico de indulgência barata para gringo ver. Ela, ao contrário, contextualiza o problema social das crianças, fala da realidade no Alemão, das dificuldades da professora, fala do impeachment de Dilma Rousseff e as consequências disso para a luta contra as desigualdades no nosso país. Abaixo, trecho da reportagem como passou na emissora:
Marielle Franco e o processo de Lula não ficam de fora e são averiguados com independência e análise crítica. Eis aqui, por exemplo, a matéria que trata do primeiro mês da morte de Marielle (em inglês).
E aqui um artigo sobre a prisão de Lula. Os autores não têm pejo em analisar a prisão como ato político, como reação das oligarquias brasileiras ao empoderamento dos mais pobres. Veja aqui (em inglês).
A qualidade do que acima foi relatado demonstra o quão falacioso é o conteúdo viralizado nesta semana pelo Movimento Brasil Livre (MBL) e pela senadora Ana Amélia. O que ocorre é que a presidenta do PT, senadora Gleisi Hoffmann, deu entrevistas para diversas emissoras do mundo, entre elas a Al Jazira. Em todas elas, Gleisi enfatizou à comunidade internacional a forma pouco parcial como Lula foi julgado e preso. No caso específico da rede Al Jazira, o MBL fez um recorte do vídeo e o viralizou em redes sociais, como o whatsapp, explicitando de forma mau-caráter que Gleisi estava se aliciando com terroristas do mundo árabe. A senadora Ana Amélia não foi tão explícita, mas fez um discurso no mínimo racista em plena tribuna do Senado da República. Disse ela textualmente: “Eu só espero que essa exortação feita pela senadora presidente do PT não tenha sido para convocar o Exército Islâmico [sic] para vir ao Brasil fazer as operações de proteção ao partido que perdeu o poder e agora parece ter perdido também a compostura e o respeito, e o apoio popular.”
Naturalmente, a senadora Ana Amélia, que originalmente é jornalista da rede RBS, afiliada da Globo no Rio Grande do Sul, não disse tamanhos absurdos de forma gratuita. Uma jornalista não saberá o que está dizendo nesse caso? Usar a tribuna do senado para dizer que uma entrevista à Al Jazira é interlocução com o “Exército Islâmico” (como se isso existisse)? Não há como escapar: ou é muita ignorância ou é muito mau-caratismo. No intuito de preservar o Senado, acredito que lá não há ignorantes. E portanto, resta a segunda opção. Vide aqui o artigo de Tiago Barbosa que constata a fake news sob medida.
De qualquer forma, tal comportamento patético mais uma vez coloca em cena a elite brasileira como motivo de riso internacional. A rede Al Jazira não sairá queimada da história. Uma rápida passagem pela programação da Al Jazira demonstrará que ela está infinitamente distante de qualquer alegado discurso terrorista. Não é emissora perfeita. Há sim críticas relacionadas a sua proximidade com alguns interesses do Estado de Israel. Mesmo assim, ela tem mostrado na maioria das vezes, até o presente momento, um caráter muito mais independente, humanista e muito mais crítico do que as redes midiáticas do ocidente, o que lhe dá lugar de destaque na mídia global por apresentar uma nova direção no discurso do fluxo de notícias globais. Principalmente no que se refere a encarar como protagonistas as vozes sub-representadas pela mídia tradicional.  -  (Aqui).

(Carlos H. Coimbra - twitter: @carloscoimbra9 - é escritor e professor da Universidade Federal do Paraná).

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