sábado, 28 de abril de 2018

A CONTEMPORANEIDADE DE PERDIDOS NO ESPAÇO

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Enquanto tentamos esquecer por instantes o que vem ocorrendo relativamente à séria Perdidos no Presente Brasil...


A família do século XXI em cacos na série Netflix "Perdidos no Espaço"

Por Wilson Ferreira

Toda refilmagem revela o espírito de época quando comparada com o original. É também o caso da série Netflix "Perdidos no Espaço" (Lost In Space, 2018), nova versão da série clássica de TV dos anos 1960 – que já contava com um longa-metragem em 1998. Agora os Robinsons não são mais a família nuclear perfeita do sonho americano, mas uma família à beira da separação que tenta reunir os cacos enquanto enfrenta os perigos de um planeta desconhecido. O novo “Perdidos no Espaço” revela o espírito de época do século XXI: o militarismo e a amoralidade do vilão. Além da relação histérica com o objeto do desejo, traço psíquico da cultura contemporânea: só voltamos a desejar aquilo que amamos na iminência da sua perda com a morte ou a destruição.

Refilmagens de filmes ou séries são sempre interessantes. Principalmente porque possibilitam um comparativo do “espírito de época”: a maneira como cada produto audiovisual representa o imaginário ou a sensibilidade de cada momento, da sociedade ou do período histórico.

Como o historiador francês Marc Ferro escreveu no livro clássico “Cinema e História”: “o imaginário é tanto história quanto História, mas o cinema, especialmente o cinema de ficção, abre um excelente caminho em direção aos campos da história psicossocial nunca atingidos pela análise dos documentos" (FERRO, Marc, Cinema e História, São Paulo: Paz e Terra, 1992, p.12).

A nova versão da série clássica de TV Perdidos no Espaço (1965-68), a produção Netflix Lost in Space (2018), é mais uma refilmagem. Até então, contávamos com o longa-metragem Lost in Space (1998) com William Hurt e Gary Oldman, como o vilão Dr. Smith e dirigido por Stephen Hopkins.

Nas três versões a estrutura do argumento continua a mesma: uma catástrofe natural ameaça a humanidade (respectivamente, superpopulação, poluição e um cometa), obrigando-a a buscar um novo planeta para colonizá-lo. Uma família é enviada (ou várias, como na série Netflix), um robô com mal funcionamento atrapalha tudo, sempre tendo por trás um vilão, o famigerado Dr. Smith que planeja sabotar a missão – na série atual, substituído por uma mulher vigarista e golpista.

Mas as semelhanças param aí. O plot narrativo central sempre foi a Família Robson, uma típica família nuclear – os pais (John e Maureen) e seus três filhos (Penny, Judy e Will). Mas o que é marcante nessas três versões é como a família vai aos poucos se desfazendo. Nos anos 1960 tínhamos uma família coesa e unida: os pais se amavam e os irmãos eram solidários. No filme de 1998 encontramos problemas de autoridade e confiança que estremecem a ordem familiar.

"Perdidos no Espaço" nos anos 1960, 1990 e 2010

Uma família em cacos


E na série atual, encontramos os Robinsons em cacos: os pais a ponto da separação e os filhos ressentidos pelo iminente divórcio. Os filhos ensimesmados e distantes uns com os outros, a mãe, uma brilhante cientista, tenta sem sucesso manter o astral da família. E o pai, um militar, prefere ficar no front de combate do que viver a rotina familiar.

Por isso, parece até que os inúmeros perigos que os Robinson enfrentam (geleiras que desabam, animais selvagens, tempestades imprevisíveis ou enguias que consomem o combustível da Júpiter 2) na série atual são meros pretextos para criar situações que permitam a família voltar a se unir e juntar os cacos.

Há em Lost In Space um pressuposto paradoxal e pós-moderno para o gênero ficção científica atual: a ausência de futuro ou da perspectiva de conhecer novos mundos – “indo onde nenhum homem jamais esteve”, como se dizia na célebre abertura de outra série clássica, Jornada nas Estrelas.

Famílias inteiras são levadas para colonizar um planeta em Alpha Centauri. Mas os novos mundos, galáxias e seres na imensidão do universo não são capazes de tocar ou transformar o espírito humano: são apenas novos cenários para as velhas picuinhas e dramas humanos – egoísmo, indiferença, traição etc. Todos parecem fugir de algo que aparentemente deixaram na Terra, mas sem sucesso. O mal acompanha a humanidade, mesmo nos mundos distantes.

Como é dito em uma marcante linha de diálogo do quarto episódio, que parece sintetizar o espírito de época de Lost In Space: “O problema com a sua colônia são as pessoas. Viajam milhões de quilômetros no espaço e acham que serão diferentes. Não importa do que fogem da Terra... elas estão trazendo junto”.


A Série


Lost in Space da Netflix tem a marca do militarizado século XXI, da política externa dos EUA do combate ao terrorismo: a família Robinson foi marcada pela ausência do pai, o militar John Robinson (Toby Stephens), casado com a engenheira aeroespacial Maureen Robinson (Molly Parker) [e pai das] filhas Judy (Taylor Russel), Penny (Mina Sundwall) e filho mais jovem Will (Maxwell Jenkins).

Estamos 30 anos no futuro, um salto que não requer tanto esforço da imaginação dos roteiristas. Afinal, se na época da série original Neil Armstrong ainda daria o pequeno passo na Lua, agora o empresário Elon Musk fala em colônias marcianas até 2040. (Nota deste blog: É fato que, para os adeptos da teoria da conspiração, Armstrong, segundo consta, teria dado o pequeno passo na Lua).

E a série ainda conta com um grande orçamento, o que se reflete na tela:  tudo, dos figurinos ao design das naves e muitos efeitos em CGI, demonstra que o projeto foi meticulosamente elaborado e com muito dinheiro disponível.

Nesse futuro próximo, a Terra está em crise com várias guerras, conflitos e, para completar, a “estrela do Natal” (um cometa) colide com o planeta criando uma espécie de noite eterna e obrigando os humanos a andar com máscaras de gás nas ruas.


Em crise conjugal e à beira da separação, Maureen decide partir com os filhos para uma missão de busca de um novo lar em Alpha Centauri, que traga esperança de sobrevivência à humanidade. John Robinson decide, então, seguir com a família para tentar reconquistá-la em um outro mundo. Mas a missão dá errado e a nave Júpiter 2, assim como outras Jupiters que compunham a missão, caem em um planeta desconhecido.

Um planeta marcado por violentos contrastes de biomas: um inóspito deserto seco e quente pode aparecer repentinamente por trás de imensas geleiras, podendo terminar numa floresta úmida.  Tudo sob ameaças de tempestades inesperadas e exóticos e selvagens animais.

Ao contrário de Perdidos no Espaço 1.0, o robô é de origem alienígena e cultivará uma relação de amizade e fidelidade com Will Robinson – repetindo sempre o bordão do velho robô do passado: “Perigo, Will Robinson!”.

E dessa vez, o Dr. Smith será uma mulher (Parkey Poser). Mas com as mesmas maquinações, traições e a covardia do velho Dr. Smith.

O vilão Amoral


É com a Dra. Smith que começamos a perceber o espírito da época atual refletido na série: enquanto no passado o Dr. Smith era o vilão clássico, um sabotador e espião típico da Guerra Fria que pretendia destruir um projeto científico do mundo livre, aqui em 2018 a Dra. Smith é apenas uma sobrevivente: ela trai, põe em risco a vida dos outros, mente e eventualmente até mata. Mas por mera sobrevivência – uma pequena escroque que viveu uma carreira de pequenos crimes e que fugiu da Terra se infiltrando na missão espacial.


Típica visão do Mal no século XXI, presente em zumbis, monstros e aliens: não matam por “maldade” (dentro da antiga polaridade certo/errado, moral/imoral) mas pela sobrevivência física – são máquinas amorais de matar. Na personagem Dra. Smith vemos, claro, apenas uma pequena fração do mal amoral desse século. Mas será o suficiente para provocar estragos ao longo da primeira temporada.

 Porém, o marcante em Lost In Space é como a família Robinson não é mais a perfeita família nuclear do sonho americano dos anos 1960. Entre uma tempestade assustadora, uma geleira que ameaça esmagar a Júpiter 2 e o ataque de animais selvagens, a família tenta juntar os cacos do que foi um dia uma vida conjugal.

Uma relação histérica com o desejo


Mais uma faceta do espírito de época desse século: a relação histérica com o objeto do desejo. Como uma espécie de deliberada recusa à satisfação. O outrora objeto do desejo só pode voltar a ser desejado na iminência da sua perda. Nove em cada dez filmes, não importa o gênero, refletem essa relação psíquica regressiva com o objeto amado: casais que vão descobrir que se amam à beira da morte ou destruição; uma família separada que se reconcilia durante uma catástrofe geológica como no filme 2012; a perda da própria vida é a condição para o protagonista valorizar os momentos felizes de uma família desfeita como em Beleza Americana etc.


Nos anos 1960-70 a família nuclear perfeita estava presente tanto na pré-história (Os Flintstones, 1960-66), na Roma Antiga (Os Mussarelas, 1972) ou no futuro como Os Jetsons (1962-87) e Perdidos no Espaço (1965-68).

Hoje esse ideal perdido permanece assombrando as famílias modernas. Como um ideal inatingível e apenas valorizado no limite da morte, catástrofe ou da ameaça do próprio fim da espécie humana.

Por isso, Lost In Space é mais uma Hipo-utopia dentro do gênero sci-fi: fala mais do presente do que sobre mundos distantes “onde o homem jamais esteve”.  -  (Fonte: Cinegnose - AQUI).

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