segunda-feira, 3 de julho de 2017

COMO FOI O PRIMEIRO CONTATO DE MESTRE GRAÇA COM A REPRESSÃO


Um Cinturão

Conto de Graciliano Ramos

As minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas e deixaram-me funda impressão. Eu devia ter quatro ou cinco anos, por aí, e figurei na qualidade de réu. Certamente já me haviam feito representar esse papel, mas ninguém me dera a entender que se tratava de julgamento. Batiam-me porque podiam bater-me, e isto era natural.
Os golpes que recebi antes do caso do cinturão, puramente físicos, desapareciam quando findava a dor. Certa vez minha mãe surrou-me com uma corda nodosa que me pintou as costas de manchas sangrentas. Moído, virando a cabeça com dificuldade, eu distinguia nas costelas grandes lanhos vermelhos. Deitaram-me, enrolaram-me em panos molhados com água de sal – e houve uma discussão na família. Minha avó, que nos visitava, condenou o procedimento da filha e esta afligiu-se. Irritada, ferira-me à toa, sem querer. Não guardei ódio a minha mãe: o culpado era o nó. Se não fosse ele, a flagelação me haveria causado menor estrago. E estaria esquecida. A história do cinturão, que veio pouco depois, avivou-a.
Meu pai dormia na rede, armada na sala enorme. Tudo é nebuloso. Paredes extraordinariamente afastadas, rede infinita, os armadores longe, e meu pai acordando, levantando-se de mau humor, batendo com os chinelos no chão, a cara enferrujada. Naturalmente não me lembro da ferrugem, das rugas, da voz áspera, do tempo que ele consumiu rosnando uma exigência. Sei que estava bastante zangado, e isto me trouxe a covardia habitual. Desejei vê-lo dirigir-se a minha mãe e a José Baía, pessoas grandes, que não levavam pancada. Tentei ansiosamente fixar-me nessa esperança frágil. A força de meu pai encontraria resistência e gastar-se-ia em palavras.
Débil e ignorante, incapaz de conversa ou defesa, fui encolher-me num canto, para lá dos caixões verdes. Se o pavor não me segurasse, tentaria escapulir-me: pela porta da frente chegaria ao açude, pela do corredor acharia o pé do turco. Devo ter pensado nisso, imóvel, atrás dos caixões. Só queria que minha mãe, sinhá Leopoldina, Amaro e José Baía surgissem de repente, me livrassem daquele perigo.
Ninguém veio, meu pai me descobriu acocorado e sem fôlego, colado ao muro, e arrancou-me dali violentamente, reclamando um cinturão. Onde estava o cinturão? Eu não sabia, mas era difícil explicar-me: atrapalhava-me, gaguejava, embrutecido, sem atinar com o motivo da raiva. Os modos brutais, coléricos, atavam-me; os sons duros morriam, desprovidos de significação.
Não consigo reproduzir toda a cena. Juntando vagas lembranças dela a fatos que se deram depois, imagino os berros de meu pai, a zanga terrível, a minha tremura infeliz. Provavelmente fui sacudido. O assombro gelava-me o sangue, escancarava-me os olhos.
Onde estava o cinturão? Impossível responder. Ainda que tivesse escondido o infame objeto, emudeceria, tão apavorado me achava. Situações deste gênero constituíram as maiores torturas da minha infância, e as consequências delas me acompanharam.
O homem não me perguntava se eu tinha guardado a miserável correia: ordenava que a entregasse imediatamente. Os seus gritos me entravam na cabeça, nunca ninguém se esgoelou de semelhante maneira.
Onde estava o cinturão? Hoje não posso ouvir uma pessoa falar alto. O coração bate-me forte, desanima, como se fosse parar, a voz emperra, a vista escurece, uma cólera doida agita coisas adormecidas cá dentro. A horrível sensação de que me furam os tímpanos com pontas de ferro.
Onde estava o cinturão? A pergunta repisada ficou-me na lembrança: parece que foi pregada a martelo.
A fúria louca ia aumentar, causar-me sério desgosto. Conservar-me-ia ali desmaiado, encolhido, movendo os dedos frios, os beiços trêmulos e silenciosos. Se o moleque José ou um cachorro entrasse na sala, talvez as pancadas se transferissem. O moleque e os cachorros eram inocentes, mas não se tratava disto. Responsabilizando qualquer deles, meu pai me esqueceria, deixar-me-ia fugir, esconder-me na beira do açude ou no quintal. Minha mãe, José Baía, Amaro, sinhá Leopoldina, o moleque e os cachorros da fazenda abandonaram-me. Aperto na garganta, a casa a girar, o meu corpo a cair lento, voando, abelhas de todos os cortiços enchendo-me os ouvidos – e, nesse zunzum, a pergunta medonha. Náusea, sono. Onde estava o cinturão? Dormir muito, atrás de caixões, livre do martírio.
Havia uma neblina, e não percebi direito os movimentos de meu pai. Não o vi aproximar-se do torno e pegar o chicote. A mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me para o meio da sala, a folha de couro fustigou-me as costas. Uivos, alarido inútil, estertor. Já então eu devia saber que gogos e adulações exasperavam o algoz. Nenhum socorro. José Baía, meu amigo, era um pobre-diabo.
Achava-me num deserto. A casa escura, triste; as pessoas tristes. Penso com horror nesse ermo, recordo-me de cemitérios e de ruínas mal-assombradas. Cerravam-se as portas e as janelas, do teto negro pendiam teias de aranha. Nos quartos lúgubres minha irmãzinha engatinhava, começava a aprendizagem dolorosa.
Junto de mim, um homem furioso, segurando-me um braço, açoitando-me. Talvez as vergastadas não fossem muito fortes: comparadas ao que senti depois, quando me ensinaram a carta de A B C, valiam pouco. Certamente o meu choro, os saltos, as tentativas para rodopiar na sala como carrapeta eram menos um sinal de dor que a explosão do medo reprimido. Estivera sem bulir, quase sem respirar. Agora esvaziava os pulmões, movia-me num desespero.
O suplício durou bastante, mas, por muito prolongado que tenha sido, não igualava a mortificação da fase preparatória: o olho duro a magnetizar-me, os gestos ameaçadores, a voz rouca a mastigar uma interrogação incompreensível.
Solto, fui enroscar-me perto dos caixões, coçar as pisaduras, engolir soluços, gemer baixinho e embalar-me com os gemidos. Antes de adormecer, cansado, vi meu pai dirigir-se à rede, afastar as varandas, sentar-se e logo se levantar, agarrando uma tira de sola, o maldito cinturão, a que desprendera a fivela quando se deitara. Resmungou e entrou a passear agitado. Tive a impressão de que ia falar-me: baixou a cabeça, a cara enrugada serenou, os olhos esmoreceram, procuraram o refúgio onde me abatia, aniquilado.
Pareceu-me que a figura imponente minguava – e a minha desgraça diminuiu. Se meu pai se tivesse chegado a mim, eu o teria recebido sem o arrepio que a presença dele sempre me deu. Não se aproximou: conservou-se longe, rondando, inquieto. Depois se afastou.
Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, soprando, espumando. E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra.
Foi esse o primeiro contato que tive com a justiça. 

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(Fonte: 'Infância', livro de autoria de Graciliano Ramos, publicado em 1945).
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Palavras de Carlos Motta, AQUI: "...que figura humana era o 'Velho Graça', um homem de princípios, severo, com uma força arrebatadora, e que, em sua vida, foi vítima de uma grande injustiça - a sua prisão, sem motivos que a justificassem - e de uma infância com episódios de crueldade sádica por parte do pai, um homem bruto e violento". 
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Certa feita, li uma passagem escrita por alguém (por mais que me esforce, não consigo precisar a fonte), que relatava, em depoimento pessoal ou por escrito, algo que me fez de pronto imaginar nitidamente a cena, como se se tratasse de um filme. Algo como: "...olhei para dentro da cela e vi, num canto, um homem de cócoras, cara de desolação, fumando, fumando, fumando...".

O preso era Graciliano Ramos, preso sem motivo, e de imediato veio-me à mente o que ele, Mestre Graça, escreveu no sombrio Memórias do Cárcere sobre o assunto.
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Outra passagem, não abordada em livro, demonstra a severidade de Graciliano não só relativamente à escrita, mas à escolha das palavras, quero dizer, ao estilo do escriba:

Graça era revisor de um jornal do Rio de Janeiro, em parceria com um outro (seria Joel Silveira?, não sei ao certo). Esse 'outro' é quem, anos e anos depois, conta que um dia, quando Graça revisava mais uma crônica, de autoria de um posudo monstro sagrado das letras, deparou-se novamente com uma avalanche de "outrossins": "Outrossim, convém enfatizar que...", "O personagem valeu-se, outrossim, de...". "Outrossim, não se tem ciência de que...".

Ao que Graciliano, furibundo, esbravejou: "Outrossim, outrossim é a senhora sua mãe!!!"  E tascou um gigantesco 'X' de alto a baixo da tal página.

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