domingo, 16 de julho de 2017

DA SÉRIE PERCALÇOS DO BRASIL


Diálogo sobre traidores antigos e traidores modernos


Por Sebastião Nunes

Cochilando debaixo de um coqueiro numa praia de Itamaracá, Joaquim Silvério dos Reis foi acordado por um galopar furioso.

Ergueu-se de um pulo, agarrando a espada na mão esquerda e a garrucha de dois canos na direita: “O que vier eu traço”, resmungou convicto.

O cavaleiro, descalço e vestido com trapos, chegou esbaforido, saltou do cavalo e aproximou-se de Joaquim Silvério, caindo de joelhos diante dele:

– Me acuda, pelo amor de Deus! Me salva, porque vão me garrotear!

Sem entender nada, o traidor mineiro olhou aquele mulato baixo, troncudo e moço, que implorava socorro.

– Acalme-se, meu amigo – disse ele. – Aqui você não corre perigo algum.

– Tem certeza? – duvidou o recém-chegado. – Olha que essas terras estão mais do que vigiadas. Os portugueses estão por toda parte, armados até os dentes.

– Eu também sou português, mas não tenha medo – disse Joaquim Silvério. – Fugi de Minas para o Rio, do Rio para o Maranhão e, só encontrando inimigos, vim parar aqui. Ainda não vi ninguém nesta praia, que é muito sossegada.

Desconfiado, o mulato se chegou devagar, mão no cabresto, pronto para montar e fugir ao menor sinal de risco.

DOIS TRAIDORES CONVERSAM
– Do que você está fugindo? – perguntou o traidor mineiro.

– Do garrote vil – disse apavorado o traidor pernambucano. – Eu estava com os portugueses, mas acabei me bandeando para os holandeses, então os portugueses me prenderam e fui condenado à morte por traição.

– Sei como é. Eu também fugi, mas foi de tiro, pau e pedra, que os brasileiros estão loucos pra me matar. No Rio quase me acabaram a tiros.

– Você traiu os brasileiros?

– Sim e não – disse Joaquim Silvério. – Entrei numa conspiração lá em Minas, que me pareceu papa fina. Devo mais de cem contos pra Coroa. Imaginei então que participando da conspiração eu me livraria das dívidas e conservaria meus bens: lavras, escravos, fazendas, casas.

– E o que aconteceu?

– Pois não é que deram com a língua nos dentes antes da hora? Toda a gente em Minas e no Rio sabia da conspiração, até o vice-rei, que só não agia porque o sobrinho, governador de Minas, estava do nosso lado e era o verdadeiro chefe.

– Ô, xente! Que angu de caroço danado – espantou-se o traidor pernambucano. – Quer dizer que todos sabiam, mas só você foi considerado traidor, é isso?

– Não foi bem assim – discordou o traidor mineiro. – Culparam só a mim porque de todos os denunciantes só eu denunciei com detalhe e por escrito. Até o governador traía seus patrícios porque seria o presidente da nova república do Brasil e seria elevado pelos cabeças, doutor Tomás e doutor Cláudio, sem falar no Alvarenga Peixoto, no padre Rolim e muitos outros.
QUEM TRAIU, QUEM NÃO TRAIU
– Comigo foi parecido – disse o traidor pernambucano. – Me chamo Domingos Fernandes Calabar, sou brasileiro nascido e criado em Pernambuco. Estava com os portugueses porque me parecia ser o melhor partido. Então, conheci os holandeses, que me prometeram maior recompensa, sem a sovinice dos portugueses. Por isso mudei de lado. Não traí ninguém. Sou brasileiro e só escolhi entre portugueses e holandeses.

– Penso igual – disse o traidor mineiro. – Sendo português, só devo lealdade à minha rainha. Também não traí ninguém. Os brasileiros é que me perseguem.

– Então está certo – disse o traidor pernambucano. – Você, português, foi leal à rainha. Eu, brasileiro, fui leal ao melhor partido estrangeiro, o dos holandeses.

– Portanto, nenhum de nós é traidor – animou-se o traidor mineiro.

– Viva nós!

– Tem um problema – disse o traidor pernambucano. – Como vamos provar nossa inocência?

FALA O ENFORCADO
Foi quando, do nada, apareceu Tiradentes – só cabeça e pescoço –, barba longa, cabelos emaranhados e um pedaço de corda pendurado no pescoço ensanguentado. Pairava no ar, bem acima dos coqueiros. A corda balançava ao vento.

– Coitados – disse comovido. – Estive ouvindo a conversa deles e sei que são considerados traidores da pátria, mas de qual pátria? No futuro é que surgirão traidores de verdade, não oportunistas tipo Calabar e aproveitadores iguais a Silvério.

Ficou em silêncio por alguns instantes, reparando na vastidão das terras que se estendiam à frente e dos lados, com o mar murmurando suavemente atrás. Terras que, a seus olhos, pareciam as mais belas do mundo, e as mais ricas, mas que só serviam aos interesses de uma minoria criminosa, cruel, inescrupulosa e educada em ganância.

– Coitados – continuou o Enforcado. –Jamais saberão o que é traição de verdade, forjada em poderes podres: compra de voto e favores, delação premiada e criminosa, calúnia descabida, prisão sem prova, mentira absurda, difamação prazerosa.

– E o pior – concluiu, antes de desaparecer envergonhado –, o pior é a malha de crimes entrelaçados, tramada para, do alto de seus podres poderes, transmitir de pais para filhos a indecência e a imoralidade de suas vidas asquerosas.  -  (Fonte: aqui).

................
O leitor se depara com crônicas ácidas, tristes, e talvez se pergunte: Quousque tandem? Infelizmente, é imperioso observar: toda vez que se age (seja quem for) ao arrepio da Constituição, desrespeitando-a em seus ditames mais comezinhos, os resultados desastrosos irrompem, para infelicidade dos interesses nacionais. O entreguismo é vício atávico, que aflora quando as circunstâncias lhe facilitam agir. 
Quousque tandem?

Nenhum comentário: