sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

CRÔNICA DE UM PAÍS DE POUCAS CASAS GRANDES E MUITAS SENZALAS

Ilustração: O Quinze, por Shiko.

O abandono dos pequenos agricultores

Por Rui Daher, na Carta Capital

Muitas vezes penso que a família Marinho tem uma estratégia genial. De tão pesados seus interesses financeiros, deixa algumas válvulas de honestidade em sua programação. É o caso, na TV, do Globo Rural.

Por um motivo ou outro, em mais de três décadas, o programa nunca deixou de olhar para a agropecuária vista assim do alto ou com a lupa, como tento fazer aqui nesta CartaCapital.  Ou a família proprietária interpretou mal quando Karl Marx se referiu à “idiotia rural” ou sabe que o repasse da linha editorial desonesta, que banca seus interesses, não precisa mais do que os noticiários.

No domingo 27, o programa apresentou matéria que me fez, imediatamente, correr ao armário e de lá tirar a AK-47 verbal, verborrágica, verborreica, incriminadora da idiotia, com que brinco.

Deixo aqui espaço para cada um usar o palavrão que quiser. Os meus seriam muito pesados e os editores não permitiriam. Recorro a Millôr Fernandes: “pensar livre é só pensar”.

Apresento-lhes a agricultora Luíza do Espírito Santo, que não lhe trouxe paz, embora sua vida justificasse pertencer à Santíssima Trindade, qualquer fosse sua colocação na genealogia cristã.

A reportagem, que recomendo, foi realizada no município de Paulistana, no estado do Piauí, e foca a miséria que trazem, quando concomitantes, uma seca de quatro anos e a falta de energia elétrica.

Como é mesmo? Quatro anos? Pensei serem mais de quatro séculos. Nascemos ouvindo isso e vivemos esperançosos de soluções que não passaram de remendos. Iniciativas públicas e privadas sempre olharam para a região na espera de que o Seu Divino fizesse o sertão virar mar.

Ao mesmo tempo, a reportagem acerta e se equivoca quando ressalta a seca e a falta de energia elétrica como motivos daquela miséria. É claro que também, mas essa realidade é a de muitos Brasis secos ou não, com ou sem energia elétrica.

Em Andanças Capitais, nem mesmo preciso ir longe, em busca dos grotões da pobreza extrema ou dos mais baixos IDH, como em Paulistana, para ver o abandono em que vivem agricultores pequenos e pobres. Seja lá qual for a roça, o trabalho é duro e no final resta-lhes darem “Graças a Deus”. Assim salvam o descalabro de sistemas econômico, político e social podres. Se Deus pudesse, já os teria gratificado.

Auge dramático, mas educativo. Perguntada, Dona Luíza diz como faz para viver: “quando dá, trabalho na roça, quando não, do cartão, o Bolsa Família”. Só? Espanta-se o repórter.

Sim, só. Agora é com vocês. Não ousem criticar-me por ter sempre apoiado o tal “assistencialismo”. Penso, existo e vivo a denunciar, até o limite de meu não-poder e de minha pouca força, os imbecis que dizem ser eles populistas, descartando a realidade social do País.

Dedico-lhes “Cálice”. Em rimas com as palavras labuta, escuta, bruta, Milton Nascimento e Chico Buarque sugerem que reflitam: “De que me vale ser filho da santa, melhor seria ser filho da outra”.

Assim como nas redes sociais, ao se posicionar contra o golpe, Chico Buarque foi dito escroto, se depois de conhecerem Dona Luíza vocês continuarem achando-a, beneficiária de 100 reais por mês, vagabunda, preguiçosa, e que vive com seus três filhos de favores do governo, são vocês os escrotos. Quantas vezes ouvi: “deviam ensiná-la a pescar, e não lhe dar o peixe de graça”.

Ora, ora, seus sacripantas, fariseus, pensam o quê? Que o Brasil é o 1% de cashmere amarrado sobre a camisa-polo e SUV entregue aos manobristas dos restaurantes de luxo (mau gosto) e caríssimos (gourmets da exposição)?

Não foi, não é, nunca será. Famílias Espírito Santo nem sempre são santas, mas também pombas transmissoras de miséria e doenças. No porvir, abutres revoando sobre os luxos de uns e a ignorância de outros.

À esquerda e direita, continuaremos construindo um País de poucas casas-grandes e milhões de senzalas com ou sem energia elétrica, que isso não resolve tudo. Melhora, afinal Thomas Alva Edison (1847-1931) inventou a lâmpada elétrica no século 19 e os brasileiros de Paulistana, no Piauí, dois séculos depois, ainda não têm acesso a ela.

Ah, mas o governo ... (...). Fora a propina nas licitações, o que mais fez o empresariado depois que o governo instituiu o Luz para Todos, em novembro de 2003, lançado pelo Decreto 4.873, com o desafio de levar acesso à energia elétrica, gratuitamente, para mais de 10 milhões de pessoas do meio rural, até o ano de 2008?

Coisa nenhuma. Juntaram-se o roto e o rasgado para postergá-lo até 2010, 2014 e agora, 2018. Na primeira etapa, levou luz elétrica a 60% das residências. Depois veio o aperto fiscal e as prioridades foram outras. Falta muito. A ninguém ocorreu tirar uns tostões do rentismo e dar à luz crianças menos miseráveis.

Não é tudo o que Dona Luíza do Espírito Santo precisa, mas daria para ela continuar pobre e acreditar em Deus. 


(Fonte: Revista CartaCapital - Aqui).

Nenhum comentário: