sexta-feira, 30 de outubro de 2015

QUANDO HUMBERTO DE CAMPOS TENTOU DAR UMA FORÇA A COELHO NETO

             O escritor maranhense Coelho Neto, da 'geração anterior'.

Debaixo do pijama azul, uma camisa do Fluminense respingada de vômito

Por Sebastião Nunes

– Foram umas laranjas-baía que ele insistiu em comer, Humberto. Desde ontem está assim, da poltrona para o banheiro e do banheiro para a poltrona. Não sei mais o que fazer. No mês passado foi a mesma coisa: comeu um prato de torresmos inteirinho!
            Humberto de Campos deu a volta e parou diante do compadre. Esquelético, cabelos ralos encharcados de suor, bigode branco empapado, o escritor septuagenário parecia não vê-lo, parecia não ver ninguém.
            Dona Gabi esfregava as mãos, nervosismo puro, segurando o choro.
            – O que é que eu faço, Humberto? A diarreia não para. Já demos tudo o que o médico receitou – e nada. Desse jeito ele morre. Um dia desses ele morre, com essa mania de comer o que não deve. O que fazer?
            Ao lado deles, Paulo e Preguinho permaneciam em silêncio.
            – Neto? Está me ouvindo, Neto? – perguntou Humberto, quase ao ouvido do compadre presente-ausente, vivo-morto, distante de tudo.
            Nenhuma resposta. E era um homem tão voluntarioso, culto, trabalhador, disposto a comprar brigas sem fim em defesa de suas ideias. Cadê aquele homem?
FRASE DE EFEITO
            Certo dia Paulo comentou, a respeito do pai: “Possuía o mais rico vocabulário da língua, calculado em 20 mil palavras”.
            Antonio Cândido julgou severamente: “Tinha imaginação relativamente escassa e capacidade de observação um tanto apressada e superficial”.
            Sobre Preguinho, o craque do Fluminense, o próprio Coelho Neto rabiscou: “Já escrevi mais de 100 livros e ainda sou apontado na rua como o pai do Preguinho”.

NA ACADEMIA
            – Ninguém mais me lê, Humberto – disse Coelho Neto com uma ponta de rancor. – Tenho vivido como se estivesse morto.
            – O que é isso, Neto! – assustou-se o compadre. – Você é ainda o Príncipe dos Prosadores Brasileiros, o último dos helenos, o maior de todos nós.
            – Conversa. Hoje não sou mais nada – balançou a cabeça o velho escritor, desanimado. – Sou apenas um cadáver à beira do túmulo.
            Ramiz Galvão discursava, pomposo, do alto de seus 88 anos.
            “Para que isso, meu Deus?”, pensava o autor de uma centena de livros, alguns maçudos. “Para que tanta pose e tanto palavreado, se vai ficar igual a mim, um saco de dores incontroláveis?” – e baixou a cabeça, num soluço.
            – Vamos, Neto – disse Humberto, de olho no ancião espigado que pregava no árido deserto da Academia Brasileira de Letras. – Vamos para casa. Ficar aqui não te faz bem. Dona Gabi te espera para jantar.
            – Mortos não jantam, Humberto – respondeu o ex-famoso escritor. – Mortos não comem. Mortos não fedem nem cheiram.
            – Bobagem, Neto – insistiu o compadre. – Você tem de ser otimista. Tem apenas 70 anos. Olha aí o Ramiz Galvão. Forte e saudável aos 88. O que ele tem que você não tem? Além do que sua literatura é muito maior do que a dele.
            – Deste ano não passo, Humberto. Estou podre por dentro.
            – Se fosse assim, Neto, eu também estaria morto. Com a bexiga me atormentando dia e noite! Com o tratamento horrível a que me obrigam! Ainda assim não desanimo. E olha que só tenho 48 anos. 22 menos que você! Coragem, homem.
            Coelho Neto se levantou devagarinho, frágil caniço pensante.

EM CASA, DE NOVO
            – Foi a Semana de Arte Moderna que desgraçou a vida dele – disse com raiva dona Gabi. – Foram aqueles moleques de São Paulo, cheios de fumaça!
            Estavam sentados na copa, Humberto e ela, a mãe de catorze filhos, agora um caquinho de gente, miúda e frágil.
            – Também penso assim, dona Gabi – disse Humberto. – Aqueles ricaços paulistas e suas madames empavonadas. E a imprensa de lá dando corda. Mas houve muita vaia, também. Muita contestação. Apupos sem fim.
            – Eu sei. Mas eles desmoralizaram o Neto. Ele representa uma escola, por isso o ódio da rapaziada paulistana. Ridicularizaram meu Neto, só porque ele foi eleito o Príncipe dos Prosadores. A molecada não engoliu isso. Nunca esquecerei o que o esnobe do Oswald escreveu no prefácio do Serafim Ponte Grande: “O mal foi eu ter medido o meu avanço sobre o cabresto metrificado e nacionalista de duas remotas alimárias: Bilac e Coelho Neto”. Alimária, veja só!
            – Se pelo menos ele voltasse a escrever nos jornais. Retomasse as crônicas...
            – Mas, como, se não tem mais saúde para nada? É da poltrona para a cama, da cama para a poltrona. Meu Deus, o que vou fazer?
            – Darei um jeito, dona Gabi. Converso com o Chateaubriand e consigo para ele uma coluna semanal. Verá como se ergue de novo.
            – Deus te ouça, Humberto, Deus te ouça!

A VERTIGINOSA VIAGEM
            Neto cochilava na poltrona. De vez em quando cabeceava. De tempos em tempos limpava com um lenço úmido um pouco de baba que lhe escorria pelo queixo. Tentou erguer a cabeça e não conseguiu. O pescoço doía. Dona Gabi havia saído. Os filhos, ausentes, trabalhavam. Preguinho treinava, um craque. De sua poltrona ouvia, muito longe, os aplausos da fanática torcida do Fluminense. Em casa, só a empregada na cozinha.
            Abriu os olhos, ainda de cabeça baixa. “Ah”, pensou, “cadê o grande escritor que esteve aqui?” Uma espécie de sorriso lhe abriu levemente os beiços rachados, bambos, ressequidos. “Fui a ilusão de mim mesmo”, continuou pensando. “Toda nova geração destrói a geração anterior. Se pelo menos eles não me tivessem escolhido, a mim, como seu inimigo! Se ao menos ...”
            Sentiu que as ideias fugiam. Que é mesmo que estava pensando? Onde estaria Gabi? Sentia frio, o suor escorria pela testa, descia pelo nariz. Sentiu as pernas dormentes. Os dedos gelados. De repente uma vertigem mais forte fez sua cabeça rodar. Tentou se firmar na poltrona, mas a casa girou e ele ficou solto no ar.
            – Gabi! – gritou. E tudo escureceu.

OS JOVENS PAULISTANOS
            Oswald de Andrade abriu o jornal e soltou uma gargalhada.
            – Veja só, Guilherme! A remota alimária bateu as botas.
            Soltou uma baforada do charuto e entregou o jornal a Guilherme de Almeida, que mexia uma xícara de café. O poeta leu o necrológio e comentou:
            – Isso é que é gastar cera com defunto ruim!
            Soltou também uma risada e voltou a mexer o açúcar, deixando o jornal aberto em cima da mesa. Pouco interessava a eles, jovens e revolucionários atores do novo mundo, a morte de um velho decadente e decrépito.
            Era a tarde de 29 de novembro de 1934. Menos de uma semana depois, no dia 5 de dezembro, Humberto de Campos também morria, numa mesa de operações. (Fonte: aqui).

Um comentário:

Unknown disse...

Poderia o amigo referenciar o texto? O link está quebrado. Obrigado. Hugo Sauaia