domingo, 30 de agosto de 2015

O DNA AFETIVO E SUAS LEMBRANÇAS


"Tem dias de saudades boas, dias que mergulho meu ser nas brumas de pensamentos vadios e lembro de onde vim, quem me fez feliz e o que gostava de fazer. De deitar no colo de minha mãe e ver TV. De tomar café com leite após duas horas de piscina gelada no raiar de um novo dia - no Clube do Trabalhador, do Sesi, onde treinava natação das 5 às 7 da manhã, por causa de uma costela que crescia pouco perto do coração. 

Do cheiro de incenso e de melodiosas canções de adoração, quando "ajudava" missa.

Do pão com manteiga que levava para lanchar no Pio XI, e que após três aulas sentado em cima dele, numa bolsa de pano da Varig, que minha mãe me deu, o calor glúteo derretia a manteiga. Como era bom. Do meu amigo Preto. Menino-amigo-irmão que dominava a arte de fabricar tudo: carro de lata, pipa, patinete, e zarabatanas de mamoeiro. Deus o tenha. 

Da harmonia de meus pais nas horas das refeições. 

De respirar na brecha da parede, no 1º andar do beliche em que dormia. Até hoje gosto de uma brecha de parede pra respirar. De ouvir sons misteriosos vindo do "beco", ao lado da janela da cama, e ficar petrificado de medo. De comer umas frutinhas na calçada do colégio, morrendo de fome, ao voltar pra casa. De caminhar uns 4 km do colégio pra casa, todos os dias fazendo uma das rotas possíveis. De nadar, do som da água, de sentir-me peixe dentro dela, nadando peito. 

De Nininha, sempre cobrando "não se sujar". 

De uma árvore que subia nela, e brincava com Zeni. Dos sertões da Paraíba e o rio seco, a ponte e a trilha do sítio de meu avô. De tomar banho no barreiro, cor de ferrugem, e com todos os monstros do mar em seu interior. De meu avô paterno ralhando mansamente quando matei mais avoantes do que comeria. De minha espingarda, sempre lustrosa, e minha fabriqueta de munição. 

De subir no telhado de casa para empinar papagaio. 

De descer as calçadas do colégio Estadual da Prata de patinete. De visitar meu pai no Senai e me perder por labirintos das oficinas, revirar lixos atrás de tocos de madeiras e de ferro, e todo mundo ao me ver dizer: "é o filho do Evandy." De ver minha mãe usando um estranho aparelho que secava o cabelo, de vê-la feliz e falante, e vaidosa. De sair com eles passeando num velho TL e parar num pé sujo, para comer costela de porco, porco caipira, e na mesa um litro de farinha e muitos limões. Nunca mais comi costelas tão apetitosas daqueles porcos criados soltos pelos quintais das cidades. 

Meninas, antes de virarem adultas chatas. 

De esperar a banda passar, na rua Antenor Navarro, saindo do Senai e desfilando frente de casa. Até hoje gosto dos dobrados. Do meu grupo de estudo do ginásio e científico Ismenia Mangueira, Ângelo, Digna, Silvana e Marilene. 

Lembranças de tanta infância e juventude boa. 

Como meus pais foram terapêuticos em nossa criação. Nunca ouvíamos palavras de rancor, de murmuração, de rabugice, de desânimo, de fofoca ou inveja. Eles eram felizes com o que tinham, e davam valor a tudo. Tudo era bênção. O único luxo a que se permitiam era fazer prestações nos ambulantes que passavam vendendo enciclopédias e livros. Todo mês tinha algo novo chegando. Imagino o quanto de esforço e renúncia fizeram para comprar a Delta Larousse, a Barsa, a Coleção Monteiro Lobato, a Tecnirama. 

São lembranças de um tempo que nunca se extinguirá, pois que virou DNA afetivo em meu coração. 

"No roçado do meu coração
Há um tempo de plantar saudade
Há um tempo de colher lembrança" - Ednardo, em 'Flora'"





(De Ricardo de Faria Barros, o Ricardim, em seu blog, post intitulado "Saudades dormidas" - aqui.

O blog de meu velho amigo Ricardim, 'Bode com farinha', de excelente conteúdo, merece atenta leitura.

Nota: Tomei a liberdade de fracionar o texto acima, para facilitar a leitura).

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