domingo, 30 de janeiro de 2022

SEM AÇÚCAR, SEM AFETO


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Impressionante. O tempora o mores !! diria o velho Cicero. Acabo de ler nas redes que Chico Buarque teria eliminado do seu repertorio a linda Com Açúcar com Afeto. Ele mesmo teria resolvido tirar porque concordou com críticas de feministas  a respeito do machismo da letra.

Eu não tiraria, eu, feminista desde o nascimento.

Eu vejo e ouço essa doce canção desde sempre como um retrato perfeito de um perfil de mulher que, sim, existe até hoje e, sim, todos/as conhecemos.

“Logo vou esquentar seu prato/ dou um beijo em seu retrato e abro meus braços pra você”, cantava Nara Leão maravilhosa e tristemente, sobre a moça que fazia o doce predileto dele, cozinhava e esperava e esperava a volta do homem.

Peraí minha gente. Vamos com calma Chico!

Eu conheço bastante de MPB, que escuto em casa desde criança, pois meu pai era cantor, gravou e foi crooner de orquestra e tinha discos maravilhosos. Mas teve de desistir da carreira pra sustentar a pequena família

E, portanto, posso dizer que todo nosso maravilhoso repertório musical sempre foi machista. E continua.

Mas claro! E como não seria, se feito por homens que sempre foram criados e reproduzidos no machismo? Nem vou citar títulos, porquê precisaria uma pesquisa e isso é pauta boa para críticos/As de música, aliás praticamente inexistentes na mídia hegemônica em estertores.

O chamado identitarismo está nos levando não sei para que outro buraco, além do enorme abismo em que o fascismo nos meteu.

As letras em geral, se você for analisar, todas escorregam nessa maionese. E o que dizer das “cachorras”, das “preparadas” que até ficaram no funk já antigo, mas sem deixar cair a peteca machista até hoje? E se fosse só funk. Não, o machismo é generoso com todos os gêneros musicais.

Breganejo é só isso. A chamada música sertaneja feita por mulher, como a moça que morreu, e me desculpem no momento esqueci o nome, e festejada como libertadora, nada mais é do que mais um apêndice fabricado e incentivado pela cultura de massas, onde a mulher toma o lugar do homem pra cantar o mesmo modo besta de ser. E grosseiro.

Nada de novo no front. Nem o lucro do agronegócio, que patrocina esse comércio musical e jamais permitiria qualquer comportamento verdadeiramente libertador!

Novos no front são os feminicídios, que em tal intensidade nunca se viu na longa história.

Daqui a pouco vão louvar em algum breganejo hit, se é que já não louvaram.

Sim, o nosso Chico pertence a uma geração machista. Entretanto, ele é uma das antenas da raça, como dizia Ezra Pound referindo-se aos poetas. E usando de licença poética – perdão Pound! —  vou trocar raça por espécie, senão vai vir algum identitarista aqui me espinafrar.

Penso que Chico tem todo o direito de fazer o que quiser com sua obra.

Entretanto, o nosso buraco é mais embaixo. Esta obra nos pertence, pertence à sociedade. E a sociedade não pode ficar exposta à sanha identitária. Há limites!!!

Estou cansadíssima. Temos uma luta sem tréguas e perigosíssima pela frente para expulsar os fascistas.

E aqui dentro, uma corrente pela qual não ponho jamais minha mão no fogo, contribuindo com lenha para queimar mais ainda a nossa carne.

Voltarei ao assunto, porque ele é vastíssimo.

Mas mesmo que o Chico retire do repertório, mesmo que todas as tochas queimem toda a produção da MPB por machismo, racismo e sectarismo, ela jamais morrerá. Não conseguirão censurar e banir.

Pois é produto de uma época, de um momento, de uma História e de um povo, tenha ela as pretensas nódoas que apontarem.

Cuidado Cartola! Cuidado Mario Lago! Cuidado Nelson Cavaquinho! Cuidado Vinicius! Cuidado Caymmi! Cuidado Lupicínio! Cuidado Tom ! Cuidado Cazuza! Cuidado Raul Seixas! Cuidado Adoniram! Cuidado Noel. Cuidado todos os nossos grandes gênios aí no Céu."



(De Elizabeth Lotenzotti, texto intitulado "Sem açúcar, sem afeto",  publicado no Jornal GGN - Aqui.

"Mas mesmo que o Chico retire do repertório, mesmo que todas as tochas queimem toda a produção da MPB por machismo, racismo e sectarismo, ela jamais morrerá. Não conseguirão censurar e banir. Pois é produto de uma época, de um momento, de uma História e de um povo, tenha ela as pretensas nódoas que apontarem."

Falou e disse).

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