quinta-feira, 9 de setembro de 2021

UM ÉPICO CURDO

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"A produção do filme fez essa opção em busca de maior segurança – Kobani, então, já era controlada pelos curdos – e por eventuais semelhanças entre a condição física das cidades. 'Um monte de escombros, no fim das contas, se parece muito com outro monte de escombros'...".


Por Carlos Alberto Mattos

A luta da população curda pela conquista de um estado é uma das grandes questões que abalam o Oriente Médio desde meados do século XX. Os curdos habitam uma região que compreende partes do sul da Turquia, do oeste do Irã e do norte do Iraque e da Síria. Enquanto o Curdistão iraquiano conquistou relativa autonomia depois de décadas de conflitos, as três outras porções continuam sujeitadas ao poder dos respectivos países, que reprimem com violência as iniciativas separatistas.

Iniciado em novembro de 2015, um ciclo de embates entre guerrilheiros do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) e a polícia e o Exército da Turquia destruiu completamente o histórico distrito Sur da cidade de Diyabarkir, a maior do Curdistão turco. Ainda assim, um pequeno grupo de guerrilheiros conseguiu expulsar as forças turcas e preservar o controle sobre a cidade. O chamado Cerco de Sur foi levado às telas no longa-metragem 100 Dias de Resistência (Ji Bo Azadiyê / The End Will Be Spectacular), de Ersin Çelik, lançado em 2019.

Este é basicamente um filme de guerra, com recursos relativamente altos de produção que se manifestam na pirotecnia dos combates. A narrativa é inicialmente conduzida pela jovem Zilan (Arjîn Baysal), que retorna a Diyabarkir em busca da memória de seu irmão, morto como mártir na luta contra o Estado Islâmico. Ela acaba por se envolver na resistência à invasão turca do distrito Sur, dissolvendo seu status de personagem principal em meio aos demais guerrilheiros.

O que mais chamou a atenção em 100 Dias de Resistência é o fato de ter sido filmado não em Diyabarkir, mas na cidade de Kobani, no Curdistão sírio. Kobani vivera situação semelhante em fins de 2014, quando foi cercada pelo Estado Islâmico e teve vários setores selvagemente devastados. A produção do filme fez essa opção em busca de maior segurança – Kobani, então, já era controlada pelos curdos – e por eventuais semelhanças entre a condição física das cidades. "Um monte de escombros, no fim das contas, se parece muito com outro monte de escombros", explicou Ersin Çelik numa entrevista. Çelik integra o coletivo Rojava Film Commune, formado na região autônoma curda.

Estamos, portanto, a um passo da ressignificação dos cenários, de uma cidade para outra, separadas por 279 km. Da mesma forma, tanques e veículos de guerra, assim como uniformes, armas e cassetetes tomados ao Exército sírio em 2016 foram recauchutados e decorados pelos cenógrafos com os emblemas da Turquia. Embora sofra com um roteiro frágil do ponto de vista dramático, o filme combina com grande acuidade tomadas amplas da paisagem danificada de Kobani com ruelas e recantos da cidade cujas ruínas foram "incrementadas" pela direção de arte.

O elenco se formou em boa parte por guerrilheiros curdos, sendo que dois deles estiveram ativos na resistência ao Cerco de Sur e fazem seus próprios papéis. A segurança ambicionada em Kobani não era garantida, uma vez que a guerra contra o Estado Islâmico prosseguia em áreas próximas da Síria. Relatos da equipe, majoritariamente curda, dão conta de que alguns membros foram mortos em bombardeios entre o início das filmagens e a finalização do filme.  -  (Fonte: Boletim Carta Maior - Aqui). 

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