quinta-feira, 16 de setembro de 2021

CHUPETAS DIGITAIS

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Para evocar as restrições sanitárias e regras de confinamento por que muitos passamos e que nos deixaram tensos, exaustos, ansiosos, viciados e conectados à internet "desde a manhã, ao acordar, até a hora de adormecer".


Por
Léa Maria Aarão Reis

O dilema das redes não é um documentário de qualidade do ponto de vista estritamente cinematográfico. Trata-se de uma sucessão de cabeças falantes norte-americanas egressas das empresas big techs, que por motivos obscuros criticam seus ex-patrões em público e denunciam o uso de plataformas digitais como um vício que assola a humanidade. Uma ou outra sequência com situações dramatizadas são catastróficas nesse filme lançado em janeiro do ano passado e no catálogo da Netflix desde setembro de 2020 onde se encontra disponível até hoje.

Além desses ex-CEOs, há o grupo de entrevistados de ex-alunos da Universidade de Stanford, especialistas em Psicologia da Comunicação. São antigos companheiros de Jeff Orlowski, que estudou na universidade californiana e escreveu e dirigiu The Social Dilemma.

Eles entretêm o espectador com algumas platitudes a respeito do controle que a tecnologia digital detém sobre nossa existência, mas são eficientes quando abordam a espionagem dos algoritmos que regem a maneira como pensamos, e a influência sobre nossas ações, e como foi e continua sendo alterado pela TI o uso do nosso tempo cotidiano e do nosso comportamento de modo geral.

Somos escravos, demonstram os personagens de O dilema das redes, das plataformas de mídias sociais que reprogramaram as sociedades e o modo de enxergar e viver a vida. Mas como repisam o que já se sabe, de modo ingênuo e leve, o resultado concreto, infelizmente, em parte se esvai.

Mas se lá atrás o tema de O dilema das redes já chamava a atenção, agora o filme readquire relevante importância e é uma sugestão atualizada para ser visto (ou revisto) com o prolongamento da covid-19, das restrições sanitárias e das regras de confinamento que deixam o indivíduo solitário, e mais do que ansioso - tenso, exausto, viciado e conectado à internet desde a manhã, ao acordar, até a hora de adormecer.

Tornaram-se indispensáveis celulares, computador ou qualquer dispositivo que ofereça a sensação de que o 'usuário' continua acompanhado de outros indivíduos, de que ele é parte (ainda) da humanidade, e de que pode produzir, consumir, ser servido e sobreviver mesmo sem ir para a rua ou pouco se aventurando fora de casa.



Outra notícia recente também nos levou a atualizar os comentários sobre o filme de Jeff Orlowski: a recente regulamentação, por parte do governo chinês, do uso de jogos eletrônicos para menores de 18 anos. Agora, na China, só é permitido aos jovens assistir vídeo games durante uma hora por dia às sextas-feiras, fins de semana e feriados.

Até onde é aceitável a intervenção da gestão do Estado na vida familiar quando a iniciativa privada não regulamenta os seus negócios no universo do neocapitalismo? Estamos entrando na era do 'capitalismo de vigilância' como se diz no filme, com os algoritmos espiões?

As autoridades receiam que adolescentes e pré-adolescentes estejam se viciando em jogos eletrônicos. Os números de distúrbios emocionais e mesmo de suicídios em pré-adolescentes 'usuários' de internet crescem no mundo inteiro, mostram as pesquisas. O objetivo de Pequim, além de proteger a saúde mental e física da infância e adolescência, é impedir a influência descomunal das corporações de TI na vida da sociedade.

''A tecnologia que ameaça nossa sociedade, nossas democracias e nossa saúde mental está à espreita dentro dos nossos quartos, está pousada, às vezes, sobre nossos travesseiros quando adormecemos'', observa o diretor Jeff Orlowski. ''Nós acordamos quando ela nos chama, levamos suas notificações para a mesa de jantar, para os restaurantes, e confiamos no que ela nos diz. Rolamos suas páginas de maneira insaciável e não desconfiamos que a mesma tecnologia que nos conecta, especialmente agora, em um mundo que nos distancia uns dos outros, é a mesma que também nos controla''.

''Muitos estudos mostram que o uso extensivo das mídias sociais pode realmente causar dependência aos 'usuários'. Ao longo do dia, eles desejam postar algo em suas páginas ou verificar as postagens de outras pessoas compulsoriamente; isso se tornou uma parte importante da nossa vida''.



Quando o filme foi lançado, o historiador, poeta e professor da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Mauro Iasi, anotou em artigo publicado em Carta Maior: ''O dilema desse documentário, comum também em outros, é que eles apresentam uma série de dados, fatos e denúncias – todos muito preocupantes – mas lhes faltam categorias de análise para compreender a questão que denunciam''.

E a questão é séria. Sobre esse sistema nervoso da civilização, como a internet foi qualificada por Julien Assange, em entrevista, no começo do seu longo exílio na embaixada do Equador em Londres, especialistas em Tecnologia da Informação alertam: as redes sociais podem ter um impacto devastador sobre a democracia e a humanidade.

Pinçamos então algumas idéias, alguns conceitos e preciosas observações que permeiam O dilema das redes. Referências que ajudam a ampliar um debate que relativa pouca atenção vem merecendo até agora.

'Usuário', é como é qualificado quem utiliza TI. Termo semelhante apenas é aplicado aos dependentes de drogas.

- 'Somos ratos dentro de um laboratório', diz um entrevistado, no filme. 'Você está sendo programado e manipulado e não tem noção disso''?

- 'Tecnologia da persuasão' é como a academia vem rebatizando a disciplina até há pouco intitulada 'Psicologia da Informação'.

- 'O cérebro humano está no seu limite de controle dos sistemas de conexão digitais'.

- Difícil, controlar a difusão de notícias falsas, as fake news. Delas provê o maior lucro das empresas de tecnologia digital. E é crescente a absorção dessas informações falsas pelos 'usuários'.

- A democracia implode em vários países, mostra o filme, com imagens em diversos cantos, inclusive em Brasília. O brasil de hoje é comentado.

- Objetivos perseguidos: transformar 'usuários' em seguidores de ditadores ou de líderes propensos à ditadura. As narrativas políticas, nesse aspecto, vêm crescendo de modo ''exponencial', mostra o doc.

- Criar dois polos opostos de opinião nesse ambiente digital e estimulá-los a não conviverem mais, nem comunicarem-se ou conversar entre si.

Algumas saídas: taxação e regulamentação de plataformas digitais e privacidade de 'usuários'.

Em suma: atenção. Estamos sendo transformados em bebês com ''chupetas digitais''.  -  (Boletim Carta Maior - Aqui). 

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