domingo, 20 de junho de 2021

A FORÇA DE UMA CPI

.
Para marcar o dia do anúncio de que o nosso País ultrapassou a ultrajante marca de 500 mil mortes por covid-19 em meio a sofrimento, angústia e exaustão de um lado, e negacionismo e desdém de outro, permitimo-nos eleger o texto abaixo, de autoria de Antônio Carlos de Almeida Castro (Kakay), sob o título em destaque, com que nos deparamos ontem, 19, no site Poder 360 - Aqui -. 


"'Fiz de mim o que não soube, e o que podia fazer de mim não o fiz. O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara, estava pegada à cara. Quando a tirei e me vi no espelho, já tinha envelhecido.'"
– Fernando Pessoa, poema “Tabacaria”.

Em um tempo no qual só se vê terror nos noticiários e em que a esmagadora maioria das mensagens são desesperadoras, um vídeo de uma escola em Israel emocionou e tocou, de forma leve, a todos que assistiram. Os meninos estão na sala de aula, absortos, quando a professora dá uma notícia.

Não é preciso saber hebraico para entender a dimensão humana do que estava sendo dito. Há uma explosão fantástica de alegria, todos tirando as máscaras, rasgando-as, gritando, sorrindo e chorando de alegria. As crianças vibram como se comemorassem um gol. É um grito uníssono de liberdade.

O aviso aos alunos da não necessidade do uso das máscaras veio após o anúncio oficial do Ministério da Saúde de Israel comunicando o fim da obrigatoriedade. Essa decisão só foi possível porque quase 60% da população recebeu as 2 doses da vacina contra a covid-19. No mesmo dia, o Brasil contabilizava 11,26% de imunização, segundo dados do consórcio de veículos de imprensa. Sim, no nosso país o governo sequer se preocupa em divulgar os dados oficiais.

O cruel, para nós, é que Israel começou a vacinar o seu povo, em uma campanha séria e coordenada, em dezembro de 2020. E usando o imunizante do laboratório Pfizer. Hoje, sabemos que, não fosse o negacionismo criminoso do presidente da República e seus asseclas, o Brasil poderia ter começado a vacinar os brasileiros exatamente no mesmo período, também usando, dentre outros, o produto da Pfizer.

A responsabilidade do Bolsonaro é direta e está sobejamente comprovada. Claro que todos os que eram submetidos a uma cadeia de comando têm que ser igualmente responsabilizados. Não há mais dúvida possível, ao contrário.

O gesto dos meninos rasgando e pisando nas máscaras é muito simbólico. É uma alegria sincera, espontânea, incontida. É um não à morte. Um grito saudando a vida. É mais do que a vida, a liberdade, a possibilidade de ser leve outra vez. É como se cada máscara pesasse uma tonelada pelo que ela representa. 

Na contramão de quem seguiu a ciência, continuamos e aprofundamos nosso roteiro de terror. No dia em que contabilizamos 493.693 óbitos oficiais, o país que tem 2,7% da população mundial é responsável por 30% de todas as mortes no mundo.

O que falta ainda para que o presidente da República seja criminalmente responsabilizado? O que estamos esperamos para destituí-lo do cargo, sabendo que, a cada dia de negacionismo, aumenta o número dos infectados, com gravíssimas sequelas e mortes?

Como diz o grande Machado de Assis, no poema Lágrimas de Cera:

Passou; viu a porta aberta.
Entrou; queria rezar.
A vela ardia no altar.
A igreja estava deserta.

Ela, porém, não vertia
Uma lágrima sequer.
Tinha a fé – a chama a arder, –
Chorar é que não podia.”

E o roteiro traçado pelos que coordenam a linha do governo continua no mesmo tom. Sim, pode parecer incrível, mas tudo faz parte de um plano de governo e de reeleição. Não se iludam! Nada é por acaso.

Enquanto o país e as pessoas responsáveis cuidam de enfrentar as consequências da política de terra arrasada, os diversos órgãos do governo “passam a boiada”. Em todas as áreas. Longe dos holofotes da imprensa, que trata, com razão, de acompanhar a tragédia sanitária, as “Damares” e os “Salles” seguem destruindo todos os avanços científicos, artísticos e humanistas acumulados nos últimos anos.

Aquele que mais se esmera na sua sina obscurantista parece ser o presidente da Fundação Palmares, agora empenhado em retirar do acervo 5.300 livros, alegando 3 décadas de suposta dominação marxista.

Impregnados pela falta acachapante de interesse cultural, ousam retirar da circulação, de uma maneira arrogante e soberba, o que eles consideram ser um perigo para a população. Fazem culto às armas e pregam o armamento indiscriminado, mas consideram os livros perigosíssimos.

Faz parte da estratégia desse governo a criação permanente de um mundo paralelo, no qual eles vivem e se alimentam –de maneira despudorada, sem limites– das fake news que são consumidas pelos seguidores fanáticos e pelos grupos de interesse financeiro e político, que fazem a sustentação do governo.

Sem nenhum pudor, o próprio presidente se dispõe a criar cortinas de fumaça e a espalhar, mesmo sabendo serem falsas, notícias que alimentarão as redes de robôs e dos bolsominions. Enquanto o país busca contar os mortos, o presidente faz uma motociata e aliados divulgam que o número de motos bateu em 1 milhão e 300 mil, recorde com direito à nota no Guinness. A conta oficial do pedágio da Rodovia Bandeirantes anotou 6.661 motos. No entanto, nesse governo, o que vale é a versão deles, sem nenhum compromisso com a realidade.

É necessário que aprofundemos a discussão sobre como dar uma resposta a tantos descasos. Desde 27 de abril, há quase 2 meses, o Brasil acompanha, tenso e atento, o desenrolar da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Covid, no Senado Federal. As provas dos crimes de responsabilidade e dos crimes comuns se acumulam abundantemente, de maneira até acadêmica.

Não há mais dúvida sobre a autoria, por omissão, de milhares de mortes nessa tragédia. A materialidade, infelizmente, é quase palpável, pois se confunde com a dor e com a angústia dos que perderam parentes, amigos, conhecidos.

Os 500 mil brasileiros que se foram permanecem entre nós, como que a nos cobrar uma atitude. Se não fizermos nada em nome de um Brasil que precisa respirar, que precisa voltar a ser feliz e a ter esperança e expectativa, que façamos em memória dos que nos acompanham silenciosamente. Ou em nome dos nossos filhos e nossas crianças que precisam, ardentemente, sair desse círculo de giz invisível que nos estrangula. Recorrendo-nos a Sophia de Mello Breyner:

“Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade"

A CPI precisa cuidar para ter efetividade. O relatório final que será produzido –e deve ser rápido, sem prorrogação– será o ponto alto da investigação, o documento técnico que poderá embasar ações efetivas na área penal e de crime de responsabilidade.

Volto a sustentar a urgente necessidade de mudança para que o relatório, após ser aprovado, possa ter real resultado. Assim que concluído, o relatório deve ser encaminhado ao procurador-geral da República, para a análise e providências, caso assim entenda o PGR, sobre os crimes comuns. Deverá ainda ser enviado ao presidente da Câmara para averiguar a hipótese de impeachment por crime de responsabilidade. E para o TCU (Tribunal de Contas da União), dentre outras designações.

Na PGR, teremos que contar com a concordância e disposição do procurador-geral, que é o dominus litis, o titular da ação penal. Só ele pode apresentar uma denúncia, peça formal que pode dar ensejo à abertura de um processo, com o consequente afastamento do presidente da República. Sequer os 11 ministros do Supremo têm, em conjunto, o direito de abrir uma ação penal sem a manifestação prévia do PGR.

Na Câmara dos Deputados, o relatório aportará na presidência da Casa e também poderá ter o caminho do arquivamento ou do esquecimento. Assim como vários outros pedidos de impeachment que não tiveram andamento. Mas agora trata-se de um relatório de uma CPI que mobilizou a nação.

Importante ressaltar que não podemos ter a pretensão de exigir que os responsáveis por receber o relatório concordem com ele e, provavelmente, conosco, a ponto de tornar imperioso o andamento dos respectivos procedimentos, já que não há norma formal que os obrigue. O que é necessário, com urgência, é mudar o regimento, a lei, a Constituição.

Seria republicana e democrática uma mudança com a previsão expressa da necessidade de, em não havendo a manifestação do PGR em um tempo predeterminado, fosse o relatório encaminhado a uma comissão de subprocuradores, para uma análise técnica sobre a conveniência de apresentação, ou não, de peça acusatória.

Em havendo, ainda assim, o arquivamento, ficaria aberto o caminho da ação penal subsidiária, desde que resolvida a questão da legitimidade para sua propositura pelo cidadão comum. No ponto, existem milhares de possíveis postulantes com plena legitimação, tendo em vista a presença forte dos que se foram em razão da omissão criminosa.

Quanto à Câmara dos Deputados, já existe um projeto apresentado pelo deputado Henrique Fontana (PT-RS) que determina que 1/3 dos deputados e deputadas poderão, mediante requerimento, submeter uma denúncia diretamente ao Plenário, dentre as que estiverem aguardando a análise do presidente da Casa. Aprovado o requerimento, o presidente da Câmara seria obrigado a instalar a respectiva comissão especial para analisar o pedido de impeachment. Depois desse procedimento, os deputados, soberanamente, irão decidir em nome do povo brasileiro.

É necessário que façamos um movimento nessa direção para que a CPI não fique apenas como uma lembrança das monstruosidades cometidas, porém, sem um efeito prático. Em homenagem a todos os que sofreram com a maldade do descaso, com a arrogância dos que optaram por cultuar a morte e desprezar a vida. Pelos que se foram, mas também por todos nós que ainda resistimos, em nome de uma confiança em ter nossas vidas, nossos sonhos e nossa esperança em dias mais leves de volta. Mirando em Clarice Lispector:

'Liberdade é pouco.
O que eu desejo ainda não tem nome.' 

Nenhum comentário: