domingo, 28 de fevereiro de 2021

A FÉ É UMA BOMBA SEMIÓTICA DA GUERRA HÍBRIDA NA SÉRIE MESSIAH

"A presença na série de referências ao livro 'O Choque das Civilizações', do historiador norte-americano Samuel P. Huntington (obra que serviu de base para a agenda da guerra ao terrorismo internacional do governo Bush em diante) corrobora com essa crítica"


Por Wilson Ferreira

Certamente a série “Messiah” (2020), produção original da Netflix, é uma das produções audiovisuais recentes que melhor detalha o fenômeno de psicologia de massas de como fé, religião e propaganda podem intencionalmente convergir numa bomba semiótica capaz de aglutinar as dores individuais em um denominador comum, criando um sentido coletivo: o acontecimento comunicacional. Surge um homem misterioso em pleno ataque do Estado Islâmico na Síria, que as pessoas acreditam ser o verdadeiro Messias. Ganha as manchetes internacionais para reaparecer nos EUA e provocar comoção cultural e política. Uma farsa? Um terrorista cultural? Mas se for verdade, é um Messias do quê? Católicos, Evangélicos, Muçulmanos, Judeus, CIA, FBI, governos de Israel, EUA, Estado Islâmico, Hamas, cada qual cria interpretações numa espiral alucinante. Provocando polarização, confusão e caos político e social. Os reais objetivos de uma Guerra Híbrida. Mas de quem? Da Rússia? De algum trabalho interno do próprio governo norte-americano? Ou será mesmo o final dos tempos?

Em postagens anteriores esse Cinegnose vem listando uma série de técnicas de manipulação de opinião pública, a caixa de ferramentas da montagem das bombas semióticas que impactam uma sociedade: “As 10 técnicas do kit semiótico de manipulação das multidões”, “Cinco novas ferramentas semióticas de manipulação em tempos de paz de cemitério”“Dez sinais de que você participa de uma seita”.

Todo esse arsenal de ferramentas baseia-se de uma única tese que salta das páginas do texto de Freud “Psicologia de Massas e Análise do Ego”, de 1921: mais do que a morte, o que a espécie humana mais teme é a solidão. Os indivíduos permanecem unidos em uma sociedade não por um poder hipnótico de um líder ou por uma perfeita maquinação propagandística que atua sobre uma massa amorfa e passiva de indivíduos. Mas por “amor a eles”, aos outros que formam a massa ou um grupo.

Para fugir da solidão aderimos àquilo que achamos que a maioria está pensando ou agindo. Isso se chama “opinião pública”, que pesquisadores como a cientista política alemã Elisabeth Noelle-Neumann definiu como “espiral do silêncio”: se um indivíduo acredita que sua opinião conflita com uma suposta maioria, ou fica em silêncio ou adere à “maioria”. Nas duas opções está presente o medo da solidão, de ser excluído do convívio com os outros. É o que Freud chamava de “amor a eles”.

A força ou efeito das bombas semióticas partem desse princípio único da psicologia de massas. Por isso conceitos tão díspares como “fé”, “religião”, “propaganda” abraçaram-se de forma tão fascinante no século XX porque viraram acontecimentos comunicacionais: o momento do encontro de uma narrativa midiática (informação, entretenimento etc.) com a jornada pessoal de um espectador. O momento em que, no meio do caos de imagens, sinalizações e discursos, emerge um “sentido”: quando a dor pessoal encontra em uma bomba semiótica um significante, um sentido, um suporte para expressar algum ponto da jornada pessoal de alguém.  

Transforma-se em algo parecido com a redução de frações ao mesmo denominador em Matemática: é como se inúmeras frações de trajetórias individuais encontrassem uma mesma quantidade. E lembre-se: “na multidão, todos nós nos sentimos mal amados”, como o Theodor Adorno traduzia a tese do “mal-estar da cultura” descrita por Freud.

Certamente a série Messiah (2020), produção original da Netflix, é uma das produções audiovisuais recentes que melhor detalha esse fenômeno de psicologia de massas: como fé, religião e propaganda podem intencionalmente convergir numa bomba semiótica que aglutina as dores individuais em um novo denominador – “sentido”. Quando esse sentido se transforma em informação, temos então o “acontecimento comunicacional”.

 O que aconteceria se o Messias retornasse à Terra? Quem é ele: Jesus? O Iman? Um Avatar? Profeta? O próprio Deus? Messiah é uma série de dez episódios nessa primeira temporada sobre o surgimento de um homem misterioso que as pessoas começam a acreditar ser o verdadeiro Messias em sua segunda vinda. 

Mas Messias do quê? Qual o seu “Plano”? Do quê ele fala? Católicos, Evangélicos, Muçulmanos, Judeus, CIA, FBI, governos de Israel, EUA, Estado Islâmico, Hamas, cada qual cria suas interpretações numa espiral alucinada. E, claro, isso produzirá polarização, conflitos e caos. Enquanto para a maioria silenciosa, o Messias é a resposta para a dor e a solidão para as quais a jornada de cada um conduziu.

Em Messiah vemos didaticamente narrados como funcionam as bombas semióticas em uma ação de guerra híbrida.




A Série

Um jovem não identificado, pequeno e magro, mas com longos cabelos negros, barba, um olhar penetrante e discurso messiânico, surge do nada na cidade de Damasco na iminência de mais um ataque do Estado Islâmico. Ele prega em uma praça em meio a tiros e explosões, até que ocorre um aparente milagre: surge uma colossal tempestade de areia que durará dias, soterrando as posições do Estado Islâmico que acabou abandonando a cidade.

O “milagre” se espalha e a desconhecida figura é chamada de Al-Masih (Mehdi Dehbi). Ele então lidera um grupo de milhares de seguidores aa cruzar o deserto até a fronteira de Israel onde resolvem acampar em silêncio. Isso provoca uma inevitável tensão política na região, alcançando o noticiário internacional.

Consequentemente, Al-Masih é feito prisioneiro pelo investigador israelense totalmente agnóstico chamado Aviram (Tomer Sisley), com a missão de interrogá-lo. Então, Aviram conhecerá as novas qualidades do “Messias”: hábil conhecedor das fraquezas e pecados humanos, encontra um ponto fraco em Aviram: a execução de uma criança em uma ação passada na cidade de Megido). 

Corroído pela culpa (divorciado tenta se reconectar com sua pequena filha), vê Al-Masih simplesmente desaparecer da cela em que estava prisioneiro – nem as câmeras de segurança registraram a fuga. Seria o segundo milagre?

Inexplicavelmente, Al-Masih reaparece algumas horas depois na pequena cidade de Dilley, Texas (EUA) em meio a uma crise catastrófica: um tornado está cruzando a cidade. Ele salva a filha adolescente de um pastor evangélico chamado Felix (John Ortiz) – ela tentava fugir de casa para longe dos dramas familiares.



Felix começa a duvidar do seu papel como ministro de um rebanho em declínio, endividado e a igreja em crise financeira. Sua esposa Anna (Melinda Hamilton) tornou-se alcoólatra e espera que seu pai, um televangelista de sucesso (Beau Bridges), dê uma ajuda financeira a um arredio Felix – ele estava à beira de queimar a própria igreja, até o tornado interromper seus planos.

A chegada salvadora de Al-Masih é vista por Felix como um milagre – a sua igreja foi a única estrutura que ficou em pé. As notícias repercutem na grande mídia americana, tornando as ruínas de Dilley a meca de romeiros, crentes, místicos new ages, hippies, desenganados pela medicina e toda sorte de pessoas à espera de alguma cura para seus próprios infernos pessoais. Todos à espera de alguma promessa de redenção de Al-Masih. Sempre silencioso, enigmático, com um discurso lacônico que mais joga perguntas do que dá respostas

Ou seja, depois de Al-Masih deixar uma crise política no Oriente Médio, reaparece nos EUA para criar mais conflitos e polarizações – se para a maioria silenciosa Al-Masih é a esperança, para as Igrejas desperta desconfiança. E também para a CIA.

Liderando a força tarefa para desmascarar Al-Masih como um terrorista cultural, está Eva Geller (Michelle Monaghan), ela própria também com seu próprio inferno: doente e solitária, vive uma relação tensa com seu velho pai (agente aposentado da CIA) – Eva acusa seu pai de displicência e de tê-la tornado pragmática e egoísta. Assim como ele desprezou sua própria mãe.



Depois disso, o Messias se transforma em uma situação sócio-política, elevando a paranoia ao nível de Estado e com as redes sociais incluídos na mistura – Al Masih é particularmente interessado no Instagram, selecionando suas próprias fotos que serão postados no perfil da filha de Felix. 

Alguns acreditam no messias, alguns querem acreditar nele, enquanto outros estão simplesmente amargurados com a aleatoriedade de tudo. Deus poderia simplesmente entrar em sua vida, sem premonição ou o céu ficando vermelho ou algum evento inarticulado ou absurdo? Al-Masih não afirma ser Deus, mas seu 'mensageiro'. Ele exibe uma aparente coleção de milagres: tempestades de areia, salvar uma igreja e a filha do pastor de um tornado e até uma controversa caminhada sobre as águas diante do Washington Monument. 

Não responde a nenhuma provocação. Judaísmo, Catolicismo ou Islã, Al-Massih convida todos a sentarem na mesma mesa em um ambiente multicultural. Em uma cena, Geller diz a Aviram: “O que era Jesus, afinal? Apenas um político populista ressentido com o Império Romano”.

Quando Al-Masih chega a Washington, ele propõe um novo caminho para a 'paz mundial', uma espécie de destilação ecumênica de todas as religiões populares. Geller, por outro lado, continua sua missão de desmascarar o que ela acredita ser uma fraude com a sinistra missão de 'ruptura social' em sua mente. Principalmente quando o presidente, atingido em suas crenças religiosas particulares, cogita em retirar todas as forças americanas da Europa Ocidental e Oriente Médio. Então, entrará em cena o Deep State para anular Al-Masih.

Acontecimento Comunicacional

Apesar de sua barba jesuíta e comportamento pastoral, Al-Masih usa moletons Nike, agasalhos Adidas e andar numa esteira de academia de ginástica como qualquer outro ser humano. Entre os controversos milagres e a banalidade de sua rotina diária, a série transforma o suposto Messias em um personagem verdadeiramente misterioso, cuja sabedoria não é sobrenatural nem religiosamente específica. Como se a nova era messiânica fosse secular e, portanto, suspeita, talvez até inaceitável para um mundo dividido pela religião.



O fenômeno Al-Masih surge naquilo que o pesquisador Ciro Marcondes Filho chamada de “contínuo midiático atmosférico”: esta realidade medial, um meio indistinto, disperso como uma neblina, um “espaço-entre” que permeia ou liga indivíduos, grupos, classes sociais, categoria profissionais, grupos de pressão etc.

Assim como o misterioso entrelaçamento quântico das ações de micropartículas à distância, também o campo perceptivo é formado por um vazio entre coisasque podem ser momentaneamente entrelaçadas por algum elemento incorpóreo.

E como se os sinais (bombardeio constante de signos pelo entretenimento, noticiários, publicidade etc.) de repente adquirissem sentido, consonância: na esfera dos grupos religiosos ou políticos cria polarizações. E na esfera das massas, da maioria silenciosa, os sinais viram informação: ganham sentido porque de alguma forma vai dar um significado para dúvidas, tormentos, dor ou esperança de cada um.

Em Messiah é visível como o evento Al-Massih adquiriu um sentido para jornadas pessoais tão dispares: Eva e a incomunicabilidade com seu pai; a culpa de Aviram deixada em Megido; a fé abalada de Felix diante da família que se desfaz, e assim por diante. Todos encontram naquele personagem desconhecido explicações ou a esperança delas. Creem através dele na existência de um Plano Maior.

Sinais ganham sentido e se transformam em informação: esse é o acontecimento comunicacional. Toda bomba semiótica que explode nesse contínuo atmosférico midiático. 

A série foi chamada de anti-islâmica e orientalista, e não se pode deixar de imaginar como a mesma história teria sido contada se Al-Masih aparecesse primeiro na Califórnia ou em algum lugar dos Estados Unidos. Não, ele surge no Oriente Médio e há fortes suspeitas de que conexões russas cederam o avião para Al-Massih chegar em questão de horas nos EUA.

A presença na série de referências ao livro “O Choque das Civilizações”, do historiador norte-americano Samuel P. Huntington (obra que serviu de base para a agenda da guerra ao terrorismo internacional do governo Bush em diante) corrobora com essa crítica.

O que vemos em Messiah é a “guerra cultural” promovida pelas guerras híbridas: como provocar conflitos, polarizações e caos em um país até chegar às instituições e ao Estado. 

Porém, para a série, guerras assimétricas sempre vêm de fora, dos tradicionais RAVs – russos, árabes e vilões em geral contra o mundo livre Ocidental. Do ponto de vista americano, a série é uma meta-guerra: transformar em drama ficcional a própria aplicação das bombas semióticas e guerras híbridas criadas pela geopolítica norte-americana.  -  (Cinegnose - Aqui).


Ficha Técnica 

Título: Messiah (série)

CriadorMichael Petroni

Roteiro: Michael Petroni, Michael Bond 

Elenco: Michelle Monaghan, Mehdi Dehbi, John Ortiz, Tomer Sisley, Melinda Hamilton

Produção: Industry Entertainment

Distribuição:  Netflix

Ano: 2020

País: EUA

 

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