quinta-feira, 15 de outubro de 2020

DA SÉRIE 'ANTES DAS ELEIÇÕES AMERICANAS'

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Trump E Pinochet: 32 Anos Após O Plebiscito Que Acabou Com A Ditadura Chilena


Por A
riel Dorfman

Os leitores podem reconhecer o país que estou prestes a descrever?

Um presidente que nunca ganhou através do voto popular, que libera toda a força de seus poderes executivos para evitar a derrota em uma eleição importante. Em comícios fervorosos e fascistas, ele acusa seus oponentes democráticos de serem fantoches a serviço de sombrios interesses estrangeiros, cativos de revolucionários e extremistas empenhados em espalhar o caos e a violência, uma ameaça à civilização cristã e ocidental. Ele avisa seus partidários fervorosos que, caso ele não vença a próxima disputa, seus bairros serão invadidos por hordas de pobres e suas mulheres estarão em perigo. Ele calunia aqueles que protestam contra ele e não faz nada para impedir que sejam atacados por bandidos de direita bem equipados. Teme-se que este homem, que se proclama o salvador do país, se recuse a aceitar o veredito das urnas, invocando a sua patente de comandante-chefe para continuar no cargo.

Falamos dos Estados Unidos de 2020?

Na verdade, eu estava retratando uma situação semelhante, que aconteceu no Chile há 32 anos, quando um plebiscito estava sendo realizado para determinar se o general Augusto Pinochet, ditador desde o golpe de 11 de setembro de 1973, permaneceria no poder, ou se o país iniciaria uma transição à democracia.

É assustador que as tentativas de Pinochet de vencer aquele referendo, no início de outubro de 1988, se assemelhem à retórica incendiária e as ações ameaçadoras de Donald Trump, em face da probabilidade cada vez mais certa de perder para Joe Biden nas eleições de novembro. Mas aquela distante eleição no Chile também oferece um exemplo encorajador para os Estados Unidos, de como as pessoas comuns podem, por meio da mobilização pacífica, salvar sua república do autoritarismo.

De fato, em 5 de outubro de 1988, o povo chileno votou de forma esmagadora – como minha esposa e eu fizemos naquele dia, em Santiago – para acabar com o pesadelo de Pinochet, com retumbantes 56% do eleitorado marcando a opção NÃO nas urnas eleitorais. Essa surra foi essencial para a estratégia da coalizão antiditador. Não poderíamos prevalecer a menos que obtivéssemos uma vitória de tal magnitude que o general Pinochet e seus aliados não pudessem contestar. Embora o tirano, entrincheirado no Palácio de La Moneda, quisesse declarar a lei marcial e ignorar a contagem final, se viu isolado depois que a Força Aérea, a Polícia Militar e proeminentes porta-vozes conservadores reconheceram o sucesso indiscutível da oposição.

Muitos previam que tal feito era impossível, dado o reinado de terror do ditador e o fanatismo de seus seguidores, mas eu estava entre aqueles que sempre acreditaram que venceríamos. Quando questionado sobre como uma vitória tão surpreendente seria alcançada, minha resposta foi que eu confiava na dignidade e na decência do povo chileno, em sua capacidade de lutar e no amor pela justiça. Eu profetizei que nosso povo, como tantos outros que mostraram heroísmo teimoso em circunstâncias adversas, sairia das sombras.

Hoje, estou lançando uma profecia semelhante para os Estados Unidos, país no qual resido e do qual também sou cidadão. Trump é uma figura menos temível do que Pinochet. Por mais que o atual presidente dos Estados Unidos admire homens fortes no exterior, ele não conseguiu, apesar de seus apetites e bravatas, imitar essas táticas totalitárias. Ele é incapaz, como o ditador chileno, de prender e torturar dissidentes, desaparecer e exilar oponentes, quanto mais silenciar a mídia. Por ser mais vulnerável que Pinochet – algo que se torna mais evidente com o vírus que ele acabou de contrair –, deveria ser mais fácil derrotá-lo. Por fim, a arrogância com que afastou os riscos desse contágio passa a pesar sobre ele.

Alguns podem me acusar de otimismo excessivo. Apesar dos danos que Trump fez ao seu país, apesar da sua reação criminoso à pandemia, sua vandalização do meio ambiente, sua guerra contra a ciência e a coexistência, seus jargões divisionistas a favor da supremacia branca, ele ainda é favorecido pelo preconceito no absurdo colégio eleitoral, e goza de considerável – e quase implausível – margem de popularidade, próxima aos 44%, número parecido ao que o general Pinochet recebeu naquele plebiscito de 1988. Esse apoio deveria bastar, se os resultados da noite eleitoral fossem atrasados. O presidente dos Estados Unidos tentará aproveitar a confusão para declarar uma emergência nacional, invocar a Lei de Insurreição e pedir que as milícias entusiastas e bem armadas que o apoiam se dediquem a impor “a lei e a ordem”. Não é inconcebível que, diante de tal encruzilhada, estourasse uma guerra civil.

Para evitar um cenário tão assustador, a oposição não pode se contentar com apenas três, quatro ou cinco milhões de votos à frente. Trump deve ser vencido de forma irrefutável. Essa demonstração imediata e conclusiva da vontade popular deve ser respaldada pela decisão daqueles inúmeros eleitores de defender a vitória eleitoral nas ruas, com seus corpos.

Estou confiante no futuro. Testemunhei, nos últimos anos, o destacamento massivo de tantos norte-americanos em favor das mudanças climáticas e da luta pelos direitos das mulheres, dos imigrantes e da justiça racial. Isso me faz acreditar que, como os intrépidos patriotas do Chile que enfrentaram um ditador há mais de três décadas, uma maioria categórica dos cidadãos dos Estados Unidos mostrará ao mundo que o homem mais poderoso do planeta será subjugado pela voz mais poderosa de um povo pacífico e mobilizado.  -  (Fonte: Carta Maior- Aqui).

(Ariel Dorfman é escritor, autor de “A Morte e a Donzela” e, mais recentemente, dos romances “Allegro” e “Cativos”, e do ensaio “Chile: Juventude Rebelde”. Foi colaborador do governo de Salvador Allende, e hoje divide sua residência entre o Chile e a Carolina do Norte, onde é professor emérito de Literatura da Universidade de Duke).

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