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Dorian Gray, um retrato do novo Brasil
Reflexão incidental: E se a Constituição da República fosse dissecada nas escolas públicas desde a mais tenra idade, como tarefa obrigatória, e se a Carta Magna tivesse ao menos alguns de seus termos e fundamentos discutidos didaticamente com o alunado, e se restasse para sempre consolidada a convicção inabalável de que a Lei Maior submete a todos os cidadãos, e se a cidadania reagisse energicamente a todas as iniciativas de autoridades que configurassem agressão a preceitos constitucionais, e se julgadores em geral, em face de tal realidade, se vissem compelidos a afastar-se da fogueira das vaidades e/ou dos eventuais conchavos? E as ameaças seguidamente lançadas pela barbárie, prosperariam? A regra é simples: Quer dar com os burros n'água? Despreze, vilipendie, enxovalhe a Constituição; comece, por exemplo, a modificar/'anular' dispositivos pétreos simplesmente com base em sua interpretação pessoal, com o de acordo de outros doutos.
Por Fábio de Oliveira Ribeiro
Pode um país agir como se fosse um personagem literário? Qual seria esse personagem no caso do Brasil?
Responder a primeira pergunta não é uma tarefa muito fácil. O país é uma imensa teia de relações linguísticas, históricas, econômicas, políticas, sociais, jurídicas, religiosas, científicas, jornalísticas, virtuais, tecnológicas, etc… que se perpetuam e se tornam mais e mais complexas ao longo de gerações que coexistem num mesmo território. Essa teia existe como realidade e como ficção, pois as comunidades também são imaginadas. Não por acaso Benedict Anderson deu um grande destaque ao jornalismo:
“O que tornou possível imaginar as novas comunidades, num sentido positivo, foi uma interação mais ou menos casual, porém explosiva, entre um modo de produção e de relações de produção (o capitalismo), uma tecnologia de comunicação (a imprensa) e a fatalidade da diversidade lingüística humana.” (Comunidades imaginadas, Benedict Anderson, Companhia das Letras, São Paulo, 2008)
Thomas Hobbes imaginou o Estado como um homem gigantesco, o Leviatã. O célebre filósofo inglês:
“… concebe a relação entre soberano e súditos constituída mediante contratos de favorecimento recíproco como uma relação geral de poder. O direito da soberania e o medo do ‘subterfúgio do direito que induz à insurreição (Hobbes, 1889, II parte, cap. 8) obstruem seu caminho para a construção de um Estado de direito, ao menos, razoavelmente substancial. Com seu acordo de investidura do soberano, os membros individuais de uma sociedade, como súditos, não conseguem obter senão a condição de membros da associação estatal e a proteção dessa associação. Em contrapartida, abrem mão tanto de uma parte de sua liberdade quanto de seu direito a tudo, inclusive o direito de resistir em nome da segurança, contanto que o Leviatã cumpra seu encargo de proteção. Sobre ‘violações do direito’ cometidas pelo soberano ou que a ele possam ser imputadas, eles não se podem queixar, já que lhe concederam amplos poderes. Pois: volenti non fit iniuria (ibdem, cap. 2(3) e cap. 5 (2); idem, 1984, cap. 21). À sombra do poder soberano sobre a vida e a morte, resta a eles a liberdade de fazer aquilo que o soberano não regulou e, se for preciso, de negar obediência. No âmbito daquilo que é regulado, as leis civis ligam inelutavelmente os ouvidos dos súditos aos lábios do soberano.” (Hobbes, 1984, ca. 21). (Técnicas de Estado – Perspectivas sobre o Estado de Direito e o Estado de Exceção, Günter Frankenberg, editora Unesp, São Paulo, 2018, p. 29)
O Leviatã (Thomas Hobbes) pode ser considerado um personagem criado por uma comunidade imaginada (Benedict Anderson). Portanto, me parece perfeitamente plausível admitir (para fins didáticos e/ou retóricos) a hipótese de que um país possa se comportar como se fosse um personagem literário. Tentarei agora responder à segunda pergunta.
Alguns diriam que o Brasil é macunaímico https://istoe.com.br/uma-republica-macunaimica/, https://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/m00002.htm e http://olavodecarvalho.org/brasil-macunaimico/. Entretanto, essa comparação me parece inadequada e até abusiva.
Alguns diriam que o Brasil é macunaímico https://istoe.com.br/uma-republica-macunaimica/, https://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/m00002.htm e http://olavodecarvalho.org/brasil-macunaimico/. Entretanto, essa comparação me parece inadequada e até abusiva.
Macunaíma é um preguiçoso convicto e inveterado. Esse aspecto da personalidade fantástica dele não corresponde mais à do nosso país. De fato, desde 2015 o Brasil faz um esforço titânico e desesperado para voltar a ser uma colônia. Nosso país renunciou ao seu sistema constitucional em 2016. No ano seguinte o Brasil trabalhou muito para renunciar ao seu mercado interno e à sua economia nacional. Em 2018 renunciamos totalmente à racionalidade, ao pré-sal, à nossa política externa independente e até à soberania territorial sobre a Base de Alcântara.
O Brasil tem trabalhado com afinco para realizar o sonho norte-americano de dominação total. Ao que parece, os donos do Estado brasileiro foram convencidos de que uma guerra entre os EUA e a China é inevitável. Sendo assim, devemos supor que eles imaginam que terão um lucro maior se o país deles ficar lado dos vitoriosos. Esse cálculo pode conter alguns erros (nenhuma guerra é inevitável; a guerra nuclear transformará todos em derrotados, etc…). Mas esse não é melhor momento para discutir essas questões.
A representação política do Estado concebida por Hobbes é um homem gigantesco. O Leviatã brasileiro sempre foi excludente e extremamente violento, capaz de aplicar a mesma Lei de maneiras distintas dependendo da situação econômica e da cor do réu. O gigante brasileiro é um imenso homem “…misterioso e decaído, satânico e perigoso, agente da ruína daquele que os cercam”https://revistagalileu.globo.com/Cultura/noticia/2019/02/o-retrato-de-dorian-gray-quando-o-horror-e-essencialmente-humano.html.
A moralidade do nosso país é semelhante à de Dorian Gray. Entre a imagem que fazemos de nós mesmos e nosso verdadeiro retrato existe um abismo. A Lava Jato combate a corrupção para que os heróis lavajateiros possam desfrutá-la ou restringi-la às classes dominantes. A Constituição Federal proíbe a pena de morte, mas os governantes, a imprensa e uma parcela da população seguem aplaudindo milhares de execuções extrajudiciais realizadas todos os anos por policiais militares.
Dorian Gray rapidamente aprende com Lord Henry Wotton que não deve julgar a si mesmo e aos demais utilizando os mesmos critérios. O Estado brasileiro nunca foi capaz de julgar seus atos e seus donos, governantes e juízes com o mesmo rigor utilizado quando condena os pobres à miséria e ao encarceramento em massa. Nos últimos anos, os representantes dos pobres têm sido presos injustamente para que os culpados de sempre possam ganhar eleições e exercer um poder acima da Lei e isento de qualquer controle.
Quando finalmente se reencontra com sua verdadeira imagem Dorian Gray morre. O fim da fraude acarreta a destruição do corpo que a hospedava. A verdade que libertou o personagem de si mesmo também liberta a filha de Lord Henry Wotton dos previsíveis efeitos deletérios do pacto satânico que Dorian Gray celebrou para permanecer eternamente jovem.
A juventude eterna do Brasil – país que infantilmente trabalha para voltar a ser uma colônia – terminará em breve. O misterioso pacto que o Exército brasileiro parece ter celebrado nos EUA para provocar a ruína da nossa democracia acarretará a destruição do planeta de uma maneira ou de outra. A acelerada devastação da Amazônia patrocinada pelo governo Bolsonaro tornará a mudança climática irreversível. A guerra dos EUA contra a China, que se tornou mais provável em razão da abjeta submissão brasileira, pode resultar numa hecatombe nuclear e/ou no colapso da economia planetária do qual todos dependemos.
O personagem de Mário de Andrade gosta de evitar conflitos e sobrevive à batalha final contra o gigante Piaimã. O destino dele não é morrer de frio às margens do lago congelado em que a Uiara ficou presa por causa do inverno nuclear. Coerente com sua própria trajetória, Macunaíma morre porque quer brincar.
Na fase atual, o Brasil se parece mais com Dorian Gray. O Leviatã brasileiro vai morrer porque celebrou um pacto demoníaco para ficar eternamente dependente, jovem e irresponsável. O fim da fraude iniciada em 2016 não conseguirá restabelecer o império da verdade sem destruir o ser-simulacro que ela mesma criou.
É verdade que Macunaína comete algumas maldades. Todavia, ele não é deliberadamente perverso, perigoso e decadente. Essas são as principais características do Brasil nesse momento. A exemplo do personagem de Oscar Wilde nosso país se tornou cruel e está disposto a arruinar as vidas de muitos para satisfazer o sadismo, a ganância e a luxúria de alguns, ou pior, de um só: o Uncle Sam.
Uma coisa é certa. Para realizar o sonho norte-americano, o Brasil deixou de ser uma comunidade imaginada por brasileiros e para todos brasileiros. Alguns já são tratados pelo novo Leviatã dependente como se fossem hóspedes indesejados. Outros estão sendo despojados de seus direitos, de suas terras e de suas vidas.
Incapazes de aplicar a Lei Antiterrorismo contra Jair Bolsonaro e suas milícias policiais e criminosas, os procuradores e juízes dormem em berço esplêndido. Eles acreditam realmente que seus salários acima do teto e suas aposentadorias abaixo da moralidade estão garantidos para sempre? Veremos até quando isso continuará a ser verdade. Afinal, se o povo resolver sacudir as correntes que o prendem ao neoliberalismo escravocrata o prejuízo provavelmente será daqueles que substituíram nossa Constituição cidadã pela imoralidade contumaz de Dorian Gray. - (Aqui).
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