segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

ALICE MUNRO: AS VOLTAS QUE O MUNDO DÁ


Alice Munro, o Prêmio Nobel e as voltas que o mundo dá
Por Sebastião Nunes  
Os escritores mais revolucionários do século XX – Kafka, Joyce, Proust e Borges – não ganharam o Nobel. Mas a canadense Alice Munro ganhou.
Quanto a Kafka, bem que Max Brod tentou. Tendo sido responsável pela fama post-mortem do escritor tcheco, reuniu-se com o comitê de premiação em 3 de julho de 1953, septuagésimo aniversário de nascimento do já então famosíssimo escritor, um dos monstros sagrados da literatura contemporânea. 
– Como não pode? – teimou um irritadíssimo Brod diante dos solenes membros do comitê. – Só porque está morto? Besteira!
– Ora, não seja teimoso – disse calmamente o presidente do comitê. – O Nobel só pode ser conferido a autores vivos. Você não leu o regulamento?
– Mas vejam, caríssimos senhores. Como pode estar morto um homem que não só revolucionou a literatura como ressuscitou a narrativa fantástica? Quem disse que a morte alcança quem se torna imortal pela fama?
Não teve jeito. Furioso, Max Brod saiu batendo a porta.
O CASO JAMES JOYCE
O advogado de Joyce foi Stephen Dedalus, seu famoso alter ego que, ao lado de Leopold Bloom, muitas vezes superou em evidência o próprio criador. A audiência foi no dia 2 de fevereiro de 1932, data do quinquagésimo aniversário de nascimento do boquirroto irlandês. 
– Como não pode? – esbravejou um irritadíssimo Dedalus. – Só porque operou os olhos nove vezes, é pobre e está praticamente cego?
– Ora, não seja teimoso – disse sentenciosamente o presidente. – Sabemos de tudo isso, mas existem normas. E uma delas diz que nenhum escritor polêmico, pornográfico ou alcoólatra pode ser laureado. Afinal, estamos na Suécia.
– Polêmico ou pornográfico? Polêmico ou alcoólatra? O que é mais importante para o comitê? Se for por aí, nenhum escritor estadunidense – aqueles paus-d’água – teria sido premiado. Sabem quanto bebiam Faulkner e Hemingway por dia? Um litro e meio de uísque, se não fosse mais! Nem tinham sangue. Só uísque nas veias.
Não adiantou nada. Stephen Dedalus, furioso, saiu batendo a porta.
O CASO MARCEL PROUST
O representante do francês – acamado naqueles dias por crises terríveis de asma e reminiscências – foi o conde Marie Joseph Robert Anatole de Montesquiou-Fézensac, inspiração para diversos personagens de vários escritores, especialmente o pirado barão de Charlus, personagem central de “Sodoma e Gomorra”, publicado em dois volumes (1921-1922). Foi recebido pelo comitê do Nobel em 10 de julho de 1921, data em que Proust deveria comemorar festivamente, se não estivesse de cama, 50 anos.
– Como não pode? – ponderou educadamente o conde. – Proust é ainda pouco conhecido, mas em breve o mundo inteiro falará dele. Por que não se antecipar e dar-lhe o prêmio que merece?
– Veja bem, senhor conde – disse educadamente o presidente, certo de que nobre de tal envergadura, ainda mais francês, merecia respeito. – O regulamento não nos dá o dom da premonição. Não somos profetas, apenas mortais comuns, mesmo revestidos do poder que a atribuição do Prêmio Nobel nos concede.
– Mas o que lhes custaria ler os quatro volumes já publicados? O segundo, “À sombra das raparigas em flor” até recebeu um prêmio importante em Paris, o Goncourt, há dois anos.
– Existe outro problema, senhor conde – disse o presidente. – Há um forte cheiro de homossexualidade em toda a obra. Tanto masculina quanto feminina. Sabemos que no futuro tal questão perderá a importância, mas, por enquanto...
– Compreendo – disse o conde. Fez uma reverência e saiu, sem bater a porta.
O CASO JORGE LUIS BORGES
Borges não tinha advogado. Apresentou-se diante do comitê com uma pasta volumosa, contendo a lista dos 555.555 signatários que pediam, imploravam e exigiam – acima de tudo exigiam – sua canonização com o Nobel.
– Infelizmente não dá, meu caro Jorge Luis – disse o presidente, manuseando o pesado dossiê de reivindicações. – Não dá principalmente porque o senhor é argentino e os argentinos – sabe como é? – estão sempre armando confusão. Se o prêmio lhe fosse concedido, teríamos, no próximo ano, todos os poetas, novelistas, contistas, críticos e dramaturgos argentinos exigindo o prêmio para eles. Para cada um deles!
– O senhor tem razão – concordou Borges. E saiu, sem bater a porta.
O CASO ALICE MUNRO
O presidente do comitê, animadíssimo, disse para os colegas:
– Essa canadense, Alice Munro, é o tipo da velha porreta! Nunca vi ninguém descrever a velhice com tamanha precisão. – Então abriu um livro e leu o seguinte:
“Você vai pensar que são os velhos tentando levar as velhas para a cama, mas, sabe, na metade das vezes é o contrário. As velhas dão em cima dos velhos. Vai ver que não estão assim tão acabadas.”
Todos riram e o presidente continuou:
“Os sábados eram cheios do alvoroço e tensão do fim de semana. (...) Os que eram visitados andavam em cadeiras de rodas ou tropegamente, com bengalas, ou então caminhavam rijos, sem ajuda, à cabeça da procissão, orgulhosos da figura que faziam, mas de certa forma com o olhar vazio ou balbuciando coisas desesperadamente, sob o estresse do esforço. (...) Para não mencionar a vida de seus corpos, as portentosas mudanças em suas entranhas, as pontadas e punhaladas que ocorriam por toda parte.”
O velho presidente fechou o livro e todos ficaram em silêncio, sentindo as pontadas e punhaladas que ocorriam em suas próprias entranhas.  -  (Aqui).

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