sábado, 29 de dezembro de 2018

BARROSO NO PAÍS DAS MARAVILHAS

Em matéria de exposição de raciocínios em defesa da alteração (ou, no fundo, extinção) de dispositivos constitucionais, incluindo as tidas como 'imexíveis' (vide artigo 60, CF) cláusulas pétreas, o time Supremo é pródigo, e a disputa é acirrada: Fux? Cármen? Toffoli? São notáveis, sem dúvida, mas nenhum alcança Luis Roberto Barroso. A Constituição diz tal coisa? Ah, mas a dura realidade impõe tal providência, que, conquanto possa configurar  negação daquilo que ela determina, é imperiosa para o bem do País e espelha o que se exige de um eficaz Guardião (assim, com 'g' maiúsculo) da Constituição. E assim, Poderes Constituintes derivado e originário à parte, um dia o Brasil alcançará o paraíso - se é que já não o fez. Mas, insistamos: E quanto às cláusulas pétreas? Ah, não vêm ao caso.
(Gravura: Arq. O Cafezinho).
Barroso no País das Maravilhas 
Por Rogério Dultra    
Às vezes o desprezível parece íntegro, o pequeno parece grande e o espúrio parece legítimo. Isto  quando há ou uma desculpa para um entendimento de mundo que nos sirva a alguma finalidade ou, por outro lado, quando trata-se tão somente de uma perspectiva deturpada. No primeiro caso, estamos diante do que Aristóteles chamava de redescrição paradiastólica, um artifício retórico a transformar o vício em virtude, no intuito de seduzir audiências. No segundo caso, o da alteração pura e simples da percepção, testemunha-se a chamada Síndrome de Alice no País das maravilhas. Nesta doença, descrita pelo psiquiatra John Todd em 1955, o indivíduo é submetido a alucinações equivalentes ao uso do LSD, imaginando distorções no mundo em volta e até mesmo no próprio corpo e em suas capacidades. 
Vamos acreditar que o caso do texto do Ministro Luís Roberto Barroso publicado no Conjur – onde este louva as decisões do STF e acolhe com entusiasmo a “nova ordem” política – é, nesse sentido, não uma espécie de submersão a um conto de fadas autocondescendente e condenável, fruto de um desvario narcísico qualquer, mas apenas a utilização da mais antiga e conhecida arte retórica.
Mas além das redescrições usuais, o texto de Barroso é profícuo em omitir causas eficientes e conhecidas de fenômenos políticos graves. É a antítese do que o historiador grego Tucídides entendia por ser o trabalho do historiador: desvelar os motivos profundos por detrás das justificativas aparentes. Nesse sentido, o autor parece menos querer de fato fazer História, mas apenas construir uma narrativa que o beneficie, eventualmente colocando-o como um ativo importante para a sua já tão admirável “nova ordem”.
Comecemos pelo principal. A articulação espúria entre meios de comunicação de massa e setores politizados do Judiciário, do MP, da PF, incluindo, evidentemente o próprio STF, foi um dos elementos da degradação da política brasileira nos últimos anos. Sobre este fato, nenhuma linha no texto do Ministro. Obviamente assumir tal “motivo profundo” seria atirar uma pedra na vidraça da própria legitimidade.
A politização da justiça e a judicialização da política – reduzidos retoricamente a um “ativismo judicial” tido às vezes como bem vindo, às vezes como um pouco exagerado – violaram sistemicamente as normas jurídicas e consolidaram uma prática judicial de compadrio político via “mutação da Constituição”, termo sofisticado para o descarte do texto constitucional indesejado.
O Ministro Barroso, auto-proclamado iluminista, reafirma em parte a politização do Judiciário ao entender ser este responsável por “mudar paradigmas inaceitáveis e empurrar a história na direção certa (sic)”. Por outro lado, nega o protagonismo político interessado e proativo do STF. Diferentemente do que diz em seu texto, foram setores politicamente relevantes do Judiciário que absorveram paixões políticas artificialmente radicalizadas pela mídia.
E foi a atuação metódica do STF que provocou a criminalização da política e o seu desprestígio, em processos que transformaram os outrora constritos e togados ministros em super-heróis condescendentes com a exposição laudatória e com as justificativas cabotinas para a débâcle da democracia brasileira.
Nesse sentido, o debate público foi sequestrado pelos meios de comunicação que, por sua vez, entenderam por bem eleger – também de forma artificial e falsificada – os “jovens idealistas” do sistema de justiça criminal como os baluartes da moral, como os representantes da vontade popular. Alguns desses jovens idealistas não foram para a política, mas para o Judiciário, como diz Barroso. Alguns deles, os mais idealistas, ou os mais ambiciosos, acabaram, ao fim e ao cabo, indo para a política. Será que somos capazes de imaginar apenas um exemplo dessa migração do Judiciário para a vida política na “nova ordem”, na onda do fenômeno da midiatização do Judiciário?…
Então, outro fato interessante que não é fruto da análise do Ministro é que, ao mesmo tempo em que verificamos o crescimento da presença do judiciário via mídia, percebemos um processo radical de transferência de seu poder decisório: o país deixou de ser guiado pela ordem jurídica propriamente dita, mas sim pela sua interpretação de ocasião, derivada de pressões externas, coordenadas pela mídia e por interesses econômicos indeterminados, eventualmente alienígenas. A perda de poder do STF, em especial a demonstrada no episódio Marco Aurélio/ Toffoli/Forças Armadas, é exemplar nesse sentido.
A narrativa produzida para a caça à corrupção – e não aos corruptos (vide a falta de acordos de leniência que levaram empresas estratégicas à bancarrota) – passou a ser o modus de controle da vida pública nacional, Judiciário a reboque.
Dizer, portanto, do Judiciário que “atiraram-no  (sic), muitas vezes na linha de tiro das paixões políticas” é usar de literatura barata para transformar o algoz – ou, no mínimo, um agente político interessado – em uma vítima indefesa da fraqueza das instituições que ele próprio colaborou para enfraquecer. Entramos no campo da redescrição.
Afinal, a violação do texto constitucional e processual penal do “trânsito em julgado” para permitir a prisão em 2ª instância foi para fazer cumprir a ordem jurídica como um todo, para realizar o texto constitucional, ou para manter Lula preso, num cálculo político que pode ser tudo, menos republicano?
Embora negue retoricamente a voluptuosa e ativa participação do STF no festim político que sucedeu à ascensão do presidente Temer, foi este o ator que chafurdou nos holofotes da mídia, chamando para si a integridade moral dos semideuses enquanto vandalizava descaradamente a Constituição e os julgados pregressos da casa de acordo com o timming da ocasião.
De 2016 para cá – e fazendo o mesmo recorte histórico benevolente de Barroso em seu texto, isto é, sem retroceder à Ação Penal 470, p. ex. – o STF foi um agente operacional da consolidação da velha ordem da política, desde o próprio Temer às eleições de 2018. E não se pode esquecer que o STF preparou em parte significativa a “nova ordem” com a autorização para que os cidadãos brasileiros se sujeitem à “colaboração premiada” já na fase do inquérito, reeditando o problema das ditaduras brasileiras – o empoderamento do guarda da esquina. Talvez aqui saiamos um pouco da retórica de Aristóteles e entremos no mundo de Alice das Maravilhas, onde, de alguma perspectiva alucinada, a ampliação do Estado policial seja um serviço prestado ao Estado de Direito e à democracia…
Nesse sentido, o STF não foi a faxineira da “tempestade política, econômica e ética” como sustenta Barroso, mas foi, sim, um de seus agentes mais entusiásticos: foi o defensor do atraso, da fragilização de direitos, do sórdido enfraquecimento dos demais poderes, enfim, foi quem chancelou em definitivo o Estado de Exceção e é hoje quem resguarda a ascensão da extrema direita ao poder – classificando-a como “íntegra”, “idealista” e “patriótica”. A “nova ordem” do Ministro Barroso se eleva caminhando sobre os despojos vandalizados de nossa democracia, despojos esses possibilitados pela ação/inação/proação de conveniência do STF. Seria risível se não fosse mediocremente trágico. Seria uma alucinação distópica se não fosse concretamente tão real. Seria apenas uma figura de retórica se não fosse a nossa história.  -  (Fonte: O Cafezinho - AQUI).
[Rogerio Dultra - Professor do Departamento de Direito Público da Universidade Federal Fluminense (UFF), do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Justiça Administrativa (PPGJA-UFF), pesquisador Vinculado ao INCT/INEAC da UFF e Avaliador ad hoc da CAPES].

Nenhum comentário: